EDITORIAL


A palavra contra o verbalismo



Com algum simbolismo, a palavra preocupada e acusadora que predominou nos actos públicos do dia 25 de Abril desmontou e refutou o verbalismo triunfalista que António Guterres levou à Assembleia da República no dia 24.


As comemorações dos vinte e três anos do 25 de Abril constituíram mais uma oportunidade para que grande parte do país demonstrasse como está profundamente ligado à data inaugural da revolução portuguesa e como continua a apoiar as suas referências e valores essenciais.

Estes sentimentos estiveram patentes nas acções populares, como as grandes manifestações de Lisboa e do Porto, nos numerosos actos comemorativos promovidos pelas autarquias, com grande destaque para a inauguração do monumento de homenagem à revolução, em Lisboa, e nas próprias cerimónias oficiais, em que se distinguiu a sessão solene da Assembleia da República.

O discurso que predominou nas comemorações não foi apenas de glorificação da data maior da nossa história recente e de afirmação de confiança nas esperanças por ela desencadeada, foi também de preocupação com a situação presente do país, nomeadamente, com a manutenção e em alguns casos o agravamento das desigualdades e injustiças sociais resultantes do prosseguimento da política de direita.

Com algum simbolismo, a palavra preocupada e acusadora que predominou nos actos públicos do dia 25 de Abril desmontou e refutou o verbalismo triunfalista que António Guterres levou à Assembleia da República no dia 24.

Na verdade, o primeiro-ministro reapareceu depois de umas quantas semanas de silêncio, num período especialmente difícil para o Governo, a agitar outra vez o oásis, servindo-se de alguns indicadores económicos favoráveis e de uns poucos recortes de certa imprensa estrangeira (tal e qual como fazia Cavaco Silva) para querer convencer os portugueses de que por obra governamental começámos a viver no melhor dos mundos possíveis. Só que, além dos governantes, ninguém dá por isso. E o que se ouviu a propósito do 25 de Abril foi exactamente o contrário.


N
a Assembleia da República, o deputado comunista João Amaral, alertou com frontalidade: »Não faz parte dos desígnios nacionais ter um exército de dois milhões de trabalhadores em regime de trabalho precário, ou manter no desemprego perto de meio milhão de portugueses.» Salientou, por outro lado, que não se pode «aceitar de braços cruzados a quebra de um compromisso como a fixação de um horário máximo das 40 horas». Explicou que se impede o referendo sobre a moeda única porque o debate iria provar que a moeda única é uma opção contra o desenvolvimento, os interesses e a independência do país.

Num ambiente em que a crítica ao Governo esteve presente na intervenção de todas as bancadas, foram também significativas algumas passagens do discurso do Presidente da República, Jorge Sampaio, quando, por exemplo, afirmou que:

«É preciso dar à política - às ideias, às propostas, ao debate - o lugar que nenhuma técnica de imagem ou de marketing pode ocupar.» (Não foi com certeza o Edson Athaíde que ficou com as orelhas a arder).

Fora da Assembleia revestem também especial importância as afirmações preocupadas de alguns militares de Abril.

O general Garcia dos Santos, num depoimento ao Semanário: «não estamos a viver uma situação que permita considerar que há justiça social, que há bem-estar e que o país está a seguir o caminho calmo para o desenvolvimento, tudo metas ou objectivos da revolução do 25 de Abril». O general Vasco Gonçalves, num depoimento à RTP1, lamentando o desemprego e outros desmandos da política de direita. O tenente-coronel Vítor Alves, ao discursar no encerramento da manifestação de Lisboa, aludindo a que «algumas perspectivas, ainda que sombrias, do presente, não podem impedir-nos de ter confiança». O tenente-coronel Ribeiro da Silva, ao discursar nas comemorações do Porto denunciando «o sistema neo-liberal de capitalismo selvagem, que faz do lucro o seu principal deus».

Por outro lado, Carlos Carvalhas, ao intervir em Alcacer do Sal respondeu ao triunfalismo económico de Guterres, observando:

«Não é com contabilidades criativas, nem com engenharias estatísticas para se fabricarem indicadores económicos e sociais favoráveis que o Governo altera a realidade.»

O secretário geral do PCP explicou, como mais desenvolvidamente documentamos noutro local desta edição, que o modesto crescimento de que o Governo tanto se vangloria se ficou a dever a dois ou três grandes projectos de obras públicas e do sector automóvel ( a Expo, as pontes Vasco da Gama e 25 de Abril e a Auto Europa), acentuando que isto, só por si, «nos dá a medida da fragilidade deste crescimento que mesmo assim tem sido inferior ao da vizinha Espanha». E menos de metade do da Irlanda, pode-se acrescentar.

Acrescente-se que o Governo e o PS não enfrentam só contestações exteriores, têm ouvido, ao que se diz, as acusações mais ásperas da parte das próprias bases, no quadro dos debates «o melhor para o país», por continuarem a política de direita. Não admira que Guterres tenha reconhecido uns «errozitos políticos», sem esclarecer de que natureza.


A
lém do verbalismo governamental em torno do regresso do oásis e da resposta contundente que recebeu nos discursos do 25 de Abril, a actualidade política alerta para dois outros aspectos: um que tem que ver com o PSD e outro que envolve o PP.

O PSD voltou à campanha sobre a «autoridade do Estado». O pretexto foi a manifestação da PSP da semana passada. Pacheco Pereira apareceu como campeão dos «ordeiros» no discurso do 25 de Abril. Disse ele que «não há meia ordem: ou há ordem ou não há.» O «ultra» Casal Ribeiro da assembleia nacional fascista disse mais ou menos a mesma coisa no período marcelista. É claro que os tempos são outros e é tudo diferente.

Mas atenção, estas campanhas a favor da autoridade Estado traduzem geralmente uma propensão autoritária e redundam em ataques às liberdades e direitos dos cidadãos.

Quanto ao PP, que pelos vistos está a braços com outra crise interna, tudo indica que já fez uma nova negociata com o Governo de Guterres.

Trata-se de duas mistificações: o PP viabilizaria o referendo sobre a regionalização na data desejada pelo PS e este aceitaria um referendo sobre matéria europeia em geral, antes da ratificação das alterações ao Tratado de Maastricht.

Não seria de maneira nenhuma um referendo sobre a moeda única. Pelo contrário, seria uma manobra tendente a esvaziar a luta com este objectivo.

O PP confirma-se mais uma vez, parafraseando Sofia Melo Breyner, como um partido que se compra e que se vende e os seus gestos dão sempre dividendos. Resta saber quais desta vez.

Tais alguns aspectos novos do quadro político do país que não deixarão de estar presentes quando amanhã os trabalhadores descerem à rua para comemorar o 1º de Maio, apoiar as suas grandes reivindicações do momento e preparar a continuação da luta para o futuro.