EM FOCO

Moeda Única:

Fortes restrições
contra os trabalhadores


- Entrevista com Paul Boccara -


Na maior parte dos países da UE é muito forte a luta social contra a política de regressão social e de ataque a conquistas dos trabalhadores.
Esta uma das constatações do Seminário Internacional promovido pelo PCP, na semana passada, sobre a Moeda Única e a União Económica e Monetária, que contou com a participação de destacados especialistas estrangeiros.
Aproveitando a deslocação a Lisboa de Paul Boccara, prestigiado economista e membro do Partido Comunista Francês, o «Avante!» colocou-lhe sobre o assunto algumas questões.



Pensa que, nos países europeus, e concretamente em França, os trabalhadores e os cidadãos identificam as políticas de Maastricht como as grandes responsáveis dos problemas actuais?

A marcha para a moeda única introduz, de facto, constrangimentos muito duros em todos os países europeus. A exigência de défices orçamentais inferiores a 3 por cento do PIB, as restrições às despesas sociais e ao sistema de segurança social, o sistema de contenção social levam, nomeadamente em França, a que a política de Maastricht comece a ser identificada como a grande responsável pelos problemas actuais. E não só entre os trabalhadores. Ao nível dos médicos, por exemplo - fortemente atingidos por estas restrições -, também se começa a verificar essa tomada de consciência.


Que pensa ter-se iniciado em que altura?

Em França, a tomada de consciência iniciou-se com os ataques à segurança social e as grandes greves de Novembro e Dezembro de 1995, processa-se com os ataques contra as reformas...

Mas também na Alemanha isto se nota. Um representante dos sindicatos da construção civil neste país, que dizia que os critérios de Maastricht e a marcha para Moeda única se repercutiam directamente no desemprego, diz agora «eu sou pela moeda única, mas... com estes problemas, com estas consequências, não podemos aplicá-la já, há que adiar.» É complicado.

Em França essa ligação ao problema do emprego começa também a ser feita. Há mesmo gente do PS que começa a tomar consciência desta ligação e a dizer que é preciso «acrescentar ao Tratado alguma coisa sobre o emprego». Aliás, esta é a posição da Confederação Europeia dos Sindicatos, que defende a introdução de um capítulo sobre o emprego.


Posição contraditória, diga-se...

É uma posição muito contraditória, essa de querer acrescentar um capítulo sobre o emprego em algo que é todo ele feito contra o emprego. É como atirar azeite para cima do fogo para o apagar.

Mas devemos agir neste quadro. E há efectivamente cada vez mais forças que agem contra a moeda única, ainda que deste modo contraditório. Mas é precisamente porque estas contradições existem - e por causa destas contradições - que nós avançamos com o problema do referendo.


Há quem, designadamente na área dos Partidos Socialistas e Sociais-Democratas, esteja a usar a marcha para a moeda única - que apoiam - e o avanço para o federalismo económico (Banco Central Europeu) como pretexto para reclamar novos avanços para o federalismo no plano político.
Que pensa dessas ideias que sustentam a necessidade de um governo europeu como forma de equilibrar e controlar as decisões do Banco Central Europeu?

No seguimento do que atrás foi dito, na medida em que cresce esta inquietação face à moeda única contra o social, contra o emprego, há efectivamente os que, dizendo «esta é a política de um Banco Central Europeu que é preciso resolver no económico», defendem uma política orçamental de espírito federalista para controlar este Banco Central Europeu. É uma maneira de contornar a oposição ao federalismo: dizer que ele é uma necessidade para a própria defesa dos trabalhadores. No fundo é isto.

Quando, na realidade, a moeda única é um sistema em que não há união mas sim unicidade. Ora nós somos pela união mas não pela unicidade. O problema está em querer fazer passar a unicidade em nome da união.


Concorda que se trata de uma questão complexa? E que é certamente nessa dificuldade que tropeçam os opositores à moeda única, não?

Para simplificar, eu digo que a união é como uma equipa de futebol. São jogadores diferentes mas que se encontram unidos, associados numa equipa. E enquanto numa equipa o jogador é soberano, pode eventualmente sair da equipa, não é um escravo do clube, na moeda única há um jogador único, as moedas não são soberanas, são suprimidas e fundidas numa moeda única e os povos são acorrentados a esta moeda única. É como se estivéssemos a inventar uma espécie de jogador de futebol meio louco, que faz-tudo. Este facto traz dificuldades consideráveis, porque há naturalmente diferenças de situação entre os povos europeus, no plano social, da produtividade global, etc.


E que diferenças...!

Exacto. Há, por exemplo, enormes diferenças de produtividade global entre a Alemanha e Portugal e, neste plano, mesmo entre a Alemanha e a França. Isto cria dificuldades porque deixamos de ter a possibilidade de diferenciar as políticas monetárias de acordo com a situação dos diferentes países. Deixamos de poder fazer políticas orçamentais diferentes, no caso, por exemplo, em que seja necessário maiores despesas para compensar um certo país.

Afinal, o que traria um governo europeu? Seria uma fuga ainda maior para a frente na política de unicidade autoritária da parte do Governo e a pressão do Banco Central e dos mercados financeiros sobre esta política, para uma ainda maior unicidade autoritária.


E como é possível, com a moeda comum que o PCF defende, lutar contra a moeda única e todos os seus perigos?

Quando nós avançamos com a ideia de uma moeda comum não é apenas por razões de ordem técnica. Trata-se de uma ideia muito política, que é, de certo modo, a de captar os que são pela moeda única mas porque enganados pela demagogia da unidade. Dizemos isto porque nós próprios pensamos que há necessidade de cooperação na Europa - em termos de solidariedade, de concertação com as novas tecnologias e as novas situações, etc. - mas concebemo-la entre nações soberanas e associadas. Como a imagem que utilizei da equipa de futebol. É precisamente o que uma moeda comum se propõe fazer. Porque ao contrário da moeda única, que suprime as moedas nacionais, a moeda comum baseia-se nas moedas nacionais.


Seria, então, um ecu fundado nas moedas nacionais?

Sim, uma moeda comum que permitiria ao mesmo tempo a diferenciação e a concertação entre as moedas nacionais. Outra diferença é que, na moeda única, é obrigatório alinhar pelo mais forte, neste caso pelo marco alemão. O que é não só contra a soberania nacional como a própria base do aspecto antisocial, do conteúdo de classe da moeda única.

Diz-se: «é para uma moeda estável». Não é. É para uma moeda forte e uma taxa de câmbio elevada. E isso para favorecer as aplicações financeiras, não sendo por acaso que os dirigentes das sociedades financeiras são «por». Porque lhes facilita as suas aplicações. Mas isto é algo que joga contra o emprego. De duas maneiras: pelos favores às aplicações financeiras e às taxas de juro fortes - em vez dos investimentos reais -, e pela dificuldade em vender para países menos produtivos que a Alemanha e de taxa de câmbio fraca.

Com a moeda comum não se é obrigado a qualquer alinhamento, já que ela mantém as moedas nacionais, podendo, ao contrário, ser utilizada para a solidariedade em favor do emprego.


Mas a moeda comum como alternativa ao euro não conduziria, no seu limite, também à necessidade de políticas económicas, fiscais e sociais comuns e, portanto, embora por outro caminho, não conduziria igualmente à «federalização» das políticas tal como o euro? Ou o que o PCF defende é só um «ecu» melhorado, é um Sistema Monetário Europeu (SME) mais aprofundado?

O Partido Comunista Francês diz que a sua posição de oposição à moeda única é tão radical que tem uma alternativa. Dito isto, a haver medidas fiscais comuns que não sejam boas, na medida em que não se está preso à mesma política monetária, é possível recusá-las ou discuti-las (como se pode discutir a estratégia de uma equipa de futebol).

Mas também pode haver acções comuns. Por exemplo, a fiscalidade contra a especulação financeira não seria uma boa fiscalidade? Penso que esta carga fiscal sobre o capital especulativo reforçaria as politicas económicas, que poderiam existir, que poderiam ser diferentes, mas no seu todo seriam reforçadas por esta fiscalidade sobre o capital especulativo. Que deveria existir não só na Europa mas no mundo.


Isso, é um aspecto...

Claro. Outro seria o de a política monetária baseada na moeda comum colocar o emprego como uma prioridade, o que seria naturalmente bom. Não se trata de federalismo mas da associação de nações soberanas. Além de que para o ecu pode haver várias concepções. Não se trata de uma concepção única, que não se pode fraccionar. Trata-se de algo que pode ter várias concepções.

No início, poderia ser de facto um ecu melhorado - porque o ecu já existe como moeda definida pelas moedas nacionais -, um SME melhorado. Mas nós pensamos que era possível fazer mais e melhor, isto é, desenvolver o papel do ecu no sentido de uma criação monetária que favoreça o emprego, os recursos humanos e um crescimento real. Mas para a eficácia social.


Está a referir-se também aos défices comerciais?

Sim. Vejamos o caso do défice comercial de um país europeu com outro país europeu. Se fossem suprimidas as moedas nacionais, desapareceriam os três meios possíveis de acção: baixar as taxas de câmbio para vender mais; baixar as taxas de juro para facilitar a produção; uma política orçamental mais expansiva para favorecer a produção nacional.

E enquanto a moeda única utiliza a baixa dos salários e dos empregos (pretendendo baixar os custos), a venda das empresas em dificuldades a estrangeiros (com a possível baixa de emprego), ou o endividamento privado (com custos relativamente ao estrangeiro), com a moeda comum, as moedas nacionais - que são conservadas - podem implementar os três meios de acção acima referidos e, a partir daqui, negociar os apoios complementares em moeda comum para melhorar a situação.


E como diferencia a sua proposta de criação do Fundo Monetário no âmbito da moeda comum, tendo em conta as experiências do FECOM?

No FECOM, antes de mais, o ecu é criado essencialmente a partir do depósito de 20% das reservas em dólares e em ouro dos bancos centrais participantes. Além do mais, como há uma certa rigidez, se por exemplo o dólar ou o ouro sobem podem-se criar mais ecus, se descem criam-se menos ecus. Nós pensamos que é possível criar a moeda comum em função de outros critérios. Através, nomeadamente, dos depósitos dos bancos centrais participantes neste banco central europeu em divisas nacionais. Como já existiu no FMI. Teríamos aqui uma criação monetária autónoma a partir das moedas nacionais.


Para serem utilizados como?

Esse é o segundo aspecto. Para que que servia o ecu no FECOM e para que vai servir esta moeda comum.

Enquanto o ecu servia sobretudo para apoios a curto prazo e para manter próximas as margens de flutuação entre as moedas - não para para apoios a longo prazo, para o investimento real deste ou daquele país -, a moeda comum pode servir para apoiar a longo prazo investimentos favoráveis ao emprego, etc. E estas duas coisas - para que é criado e para que serve -, estão ligadas entre si.


É no problema do emprego que os defensores do referendo insistem?

É que as taxas de desemprego na Europa são muito diferentes. Entre os 10% da Alemanha (16% na Alemanha do Leste) e os 21% da Espanha há uma enorme diferença. A partir desta moeda comum, destes direitos da moeda comum, tudo é depois um jogo de escrita. Os depósitos de moedas nacionais, por exemplo, são jogos de escrita mas são direitos. Um país, por exemplo, que teria direito a levantar moeda comum vai levantar em marcos alemães, para comprar na Alemanha máquinas para facilitar o seu desenvolvimento e empregar gente. E isto será feito a partir de créditos porque o país poderá levantar moeda comum mas o Banco Central que recebe não desembolsará nada. Esta moeda não tem juros nem é reembolsável. É uma criação monetária entregue não onerosamente ao Banco Central do país.

Como os direitos de «saques especiais» do Fundo Monetário Internacional. Estes «saques especiais» - feitos em função do ouro - eram criação monetária não reembolsável. Mas, evidentemente, o FMI impõe condições políticas e económicas.


A propósito dos direitos dos «saques especiais» transformados em moeda comum, como promoveriam a estabilidade internacional no respeito dos países em vias de desenvolvimento?

Essa é uma outra questão. O Banco Central do país que recebe esta moeda pode fazer taxas de juro muito baixas e inclusive taxas de juro negativas como uma subvenção.

Sem que haja no nosso projecto de moeda comum necessariamente a obrigação de fazer uma mudança a nível mundial, é evidente que seria melhor se pudéssemos fazer essa mudança. Isso possibilitaria desenvolver os direitos de saques especiais actuais a nível mundial enquanto criação de moeda comum mundial.

Seriam direitos de saques especiais muito diferentes dos actuais. Quer em quantidade, porque neste momento cria-se muito pouco (e visto o dólar ser a moeda comum mundial real, cabem aos EUA as decisões), quer pelos critérios que adoptaria, sem os constrangimentos de política económica impostos pelo FMI. Pelo contrário, a obrigação seria a de criar emprego, fazer despesas sociais.


Como interpreta os acontecimentos em VILVORDE com a deslocalização da Fábrica Renault, que provocou um processo de luta ao nível europeu, não só dos trabalhadores belgas mas também dos trabalhadores portugueses, espanhóis e franceses? E que ligação faz desta situação com o processo de convergência nominal imposto por Maastricht na prossecussão da moeda única?

Esse assunto de Vilvorde é muito interessante. Podemos dizer que na Europa vai haver um antes de Vilvorde e um depois de Vilvorde. E porque dizemos isto? Porque, antes, os perigos da construção Monetária Europeia para o social e para o emprego, para o mercado nacional, eram dificilmente discutíveis na Bélgica. Quem pusesse estes problemas aparecía como um espírito sectário, fechado, mal intencionado. Agora, são os próprios trabalhadores da Bélgica que colocam questões e dizem perceber que há problemas, embora não captem muito bem ainda o conjunto em que tudo isto funciona. Mas este é um movimento que existe um pouco por todo o lado.


Como explica que uma empresa que foi pública, como a Renault, simbolize hoje todo este movimento das transnacionais?

A Renault, na realidade, é uma sociedade mista, ou seja, uma sociedade de direito privado mas em que o principal accionista continua a ser o Estado. Aliás, a maioria das privatizações das empresas são ainda assim. Em relação à Renault, concretamente, há por um lado os critérios de Maastricht, por outro toda a jurisprudência ultraliberal de Bruxelas, toda esta legislação segundo a qual o Estado accionista não pode intervir para favorecer estas empresas. A isto junta-se o facto de que a Renault - precisamente por causa do papel de mau accionista do Estado - era uma empresa que tinha encargos financeiros importantes, taxas de juro a pagar.


...de que se tentou «desembaraçar»?

Sim. E como? Lutando com grande energia contra os custos salariais, tentando despedir ao máximo mas também fazendo aplicações financeiras. Hoje, a grande maioria dos lucros da Renault vêm de aplicações financeiras e não da sua actividade industrial. E por isso a Renault está completamente amarrada a este sistema de encorajamento de crescimento financeiro contra o crescimento real.

Posso dizer isto porque estudei a situação da Renault, mas os trabalhadores não captam toda esta realidade. O jornal «L'Humanité» insistiu, por exemplo, sobre estes lucros financeiros da Renault, porque isto ajuda os trabalhadores a compreender todo este processo e a luta contra esta política de alinhamento com o marco e os grupos financeiros contra o emprego.

Mas isto é um processo difícil. Há ainda muita gente intoxicada que diz «bom, a Renault está em todos os países e nós precisamos da união, porque só com a moeda nacional... » Se não tivermos ao mesmo tempo esta alternativa moeda nacional/moeda comum, estes argumentos são utilizados pelos demagogos da moeda única e as dificuldades maiores.


Por último, diga-nos: como está a decorrer a vossa campanha pelo referendo?

A campanha pelo referendo começou há alguns meses. No plano qualitativo há novas forças que se aproximam e hoje não há só o Partido Comunista nesta luta. Há o Movimento dos Cidadãos - um pequeno partido de esquerda que saíu do Partido Socialista com um ex-ministro socialista - e, mesmo os Verdes, que eram pela moeda única, começam agora a dizer que o são, «mas, por enquanto, talvez um compromisso com a moeda comum...». Posso dar o exemplo de uma militante «Verde» do Norte de França, aliás presidente do Conselho Regional e não uma militante qualquer, que defende o referendo.

Mesmo gente de direita, como um ex-ministro do general De Gaulle que, numa entrevista ao jornal «L'Humanité» (13.2.97) diz ser pelo referendo. Mas não só, ele participa activamente na campanha, escreve artigos em revistas (algumas muito burguesas) onde afirma a sua posição favorável ao referendo.


Em temos quantitativos, sabemos que têm objectivos audaciosos...

No plano quantitativo há também um progresso - nestes últimos dias ultrapassámos as 600 mil assinaturas - e pensamos que é possível e muito provável alcançar o milhão de assinaturas, que a 15 de Junho vamos levar à Presidência, precisamente um dia antes da grande manifestação europeia sobre o emprego.

Em França esta campanha é naturalmente difícil de compreender. Não digo para o secretário-geral ou para mim, enquanto economista, mas para os quadros médios do partido. Um artigo que vi no jornal «L'Humanité», a propósito da campanha sobre o referendo, dizia precisamente que o secretário da secção comunista da Renault-Cléon, um bastião da Renault, obteve um enorme sucesso na campanha que fez pelo referendo e na recolha de assinaturas. Uma parte desse sucesso deve-se ao facto de ele insistir constantemente na alternativa do PCF com a moeda comum. Não quero a partir daqui generalizar mas este é um bom sinal.