EM FOCO

Brincar com coisas sérias...

Sobre as alterações do Sistema Eleitoral

 

Por Luís Sá



O sistema eleitoral é um factor da maior importância no quadro do funcionamento de um sistema político como o português, que assenta essencialmente na democracia representativa. Com efeito, a complementaridade entre a representação política e a democracia participativa para que aponta a Constituição tem escassa projecção prática e a democracia directa pura e simplemente nunca existiu. E mesmo que assim não fosse, a representação política genuina não deixaria de ser uma questão central. Tanto assim é que a proporcionalidade integra os limites materiais de revisão constitucional.


A existência de um sistema de poder baseado essencialmente ao nível político em eleições competitivas devia implicar igualdade mínima de oportunidades dos concorrentes, bem como outros factores que não é oportuno referir aqui. Mas implica também, sem dúvida, um mínimo de justiça na conversão de votos em mandatos.

Contra a proporcionalidade já se disse muito. Por exemplo, que prejudica a governabilidade, a qual só seria possível com maiorias absolutas, o que obrigaria a fabricá-las artificialmente. Ou ainda que colocaria os deputados e os candidatos longe dos eleitores e dos cidadãos. Ou que os tornaria dependentes do arbítrio dos directórios partidários, o que não aconteceria com outros sistemas...

Tudo isso faria com que um sistema eleitoral proporcional fosse um factor essencial para levar o eleitor a afastar-se da política, a olhar com reserva e suspeição a chamada "classe política" e o sistema de que esta faz parte. Não se diz que os sistemas maioritários e os círculos uninominais em particular têm sido alvo de veementes contestações por levarem a que importantes sectores da população não se sintam politicamente representados; por deixarem partidos minoritários relevantes fora dos parlamentos ou escandalosamente subrepresentados (caso dos verdes e liberais no Reino Unido); e até existe quem o critique por dificultar ou inviabilizar a integração no sistema de sectores políticos minoritários.

A verdade, porém, é que a alteração dos sistemas eleitorais baseados na proporcionalidade na conversão de votos em mandatos na sequência da contestação à proporcionalidade mostrou que os males apontados não foram superados e que estes residem noutros aspectos: incapacidade do poder político de resolver muitos dos problemas concretos; incumprimento de promessas eleitorais; casos de corrupção, nepotismo e de manifesta ausência de valores éticos na actividade política; menorização da instituição parlamentar; dependência do poder político em relação ao poder económico ou outros poderes; política-espectáculo, com subalternização do debate das questões reais, etc. .

O sistema mais justo, no entanto, é incontestavelmente o sistema proporcional. Os defeitos que lhe são atribuídos não são muitas vezes inerentes a esse sistema, mas sim ao modo como funcionam certos «agentes políticos», que não se altera com a mudança das regras eleitorais.

A proporcionalidade, entretanto, não é só uma fórmula matemática. Depende também do tamanho dos círculos eleitorais, da dimensão do órgão a eleger, da distribuição territorial dos votos dos partidos e coligações, etc.. Tanto assim é que o conceito de índice de proporcionalidade, aplicável a todos os sistemas eleitorais, tem exactamente como objectivo avaliar em que medida existe ou não proximidade ou afastamento entre votos e mandatos obtidos. Este cálculo é aplicável a todos os sistemas, maioritários ou proporcionais. Assim, por exemplo, na revisão constitucional de 1989 já se introduziu uma alteração importante ao reduzir o número de mandatos da Assembleia da República. O prejuízo de 16% da representação do PCP, 6% do PSD e 8% do PS, mostra bem a injustiça deste tipo de medidas e como afecta a proporcionalidade. A desertificação do interior do país, com redução do peso de muitos círculos e do número de mandatos a eleger, fez já com que exista um bom número de círculos em que o número e percentagem de votos necessário para obter um deputado é muito elevado, afectando igualmente muito a proporcionalidade.

É num quadro deste tipo que surgem as propostas de revisão constitucional do PS, PSD e PP e o acordo de revisão entre os dois primeiros. Recorde-se que nos debates da «primeira leitura», foi jurado que todos os círculos de apuramento se manteriam como círculos plurinominais e de aplicação plena da proporcionalidade. Admitiu-se a possibilidade de círculos uninominais, mas como meros círculos de candidatura. Os candidatos eleitos seriam imputados ao número que coubesse a cada partido nos «círculos de apuramento», que apenas serviriam para designar parte dos candidatos concretos que teria cada partido. O PS e PSD, porém, no acordo de revisão, deixaram de fazer uma tal distinção e de admitir os círculos uninominais apenas como círculos de candidatura e parecem apontar para círculos eleitorais de apuramento...

É intolerável neste processo, por outro lado, que se vão sucedendo ao longo dos anos sucessivos «modelos» eleitorais teóricos, sobretudo da parte do PS. Já se falou em sistema alemão e em sistema dinamarquês por deputados diferentes e no mesmo dia; já surgiram diversos «estudos», sem chancela oficial; agora, no Expresso de 19 de Abril surgem novos «estudos», desta vez de José António Lima, para justificar medidas que o acordo PS/PSD permite: afirma-se que reduzir de 230 para 130 o número de deputados não prejudicaria a proporcionalidade e até a beneficiaria, porque haveria um círculo nacional de 20 deputados para recuperar «restos», isto é, votos que não fossem «úteis» para eleger deputados; os círculos uninominais de apuramento também não a prejudicariam porque haveria oito círculos, correspondentes a regiões administrativas, e não dezoito, correspondentes aos distritos, como hoje acontece. Entretanto, e mostrando em que consistiria a «aproximação dos deputados aos eleitores», distritos como o de Beja, hoje com quatro deputados, ficariam apenas com um deputado, que por sinal seria do PS. Imagina-se toda a população de Beja, mesmo a mais próxima do PSD e do PCP, muito mais próxima de um tal deputado do que hoje poderia estar dos quatro deputados eleitos hoje pelo mesmo círculo...

Mais significativo, entretanto, é o facto de o PS e PSD pretenderem alterar a Constituição, permitindo reduzir o número de deputados, mas sem a salvaguarda de um círculo nacional de recuperação de restos que não elegeram deputados nos váriuos círculos; admitirem círculos uninominais, mas sem dependência da prévia criação das regiões administrativas. Dito de outra forma: os sucessivos «exercícios eleitorais» que vão sendo «colocados» destinam-se a criar a ideia na opinião pública de que não seria afectada a conversão de votos em mandatos, mas não têm qualquer fundamento concreto as garantias que se pretende apresentar para «provar» que a proporcionalidade não seria afectada.


Factos

Restam alguns factos incontestáveis.

Primeiro: não se compreende que em matérias fundamentais como número de deputados ou sistema eleitoral a Constituição possa ser tão vaga como o PS e PSD pretendem. Esta questão é, aliás, extensiva a outras matérias, como o sistema de eleição das câmaras municipais.

Segundo: numa matéria de tal gravidade não se pode aceitar que o PS vá atirando modelos e hipóteses para o ar, falando num dia do modelo alemão, no mesmo ou no dia seguinte no modelo dinamarquês, para logo depois admitir um sistema misto de círculos eleitorais de várias candidaturae e de círculos uninominais, com múltiplos exercícios mediáticos pelo meio. Esta questão é demasiado séria para andar a brincar aos sistemas eleitorais.

Terceiro: a perspectiva de criar oito regiões adninistrativas no continente como alibi para as tropelias de revisão constitucional choca-se com as trapalhadas em que o PS se envolveu com a direita em matéria de regionalização, dando-lhe tudo o que esta exigiu com vista a impedi-la.

Quarto: não é o sistema eleitoral que provoca o desencanto mas sim a frustração de muitos eleitores com as políticas que são executadas e os problemas que não são resolvidos, ou que impede o PS de governar bem e corresponder às expectativas que gerou em muitos eleitores em 1985.

Quinto: como o demonstram casos como o italiano, em que o sistema eleitoral foi alterado no quadro de uma profunda crise e largos debates, não são as características do sistema eleitoral que provocam as disfunções que têm vindo a ser assinaladas em vários sistemas políticos na Europa ou no mundo nem é a a sua alteração que permite corrigi-los.

O actual processo eleitoral no Reino Unido permite assinalar de novo fenómenos e comportamentos políticos como o inteiro abandono pelos partidos dos círculos eleitorais de resultado seguros (por perda ou ganho certo do deputado); mudança de comportamentos eleitorais dos eleitores por voto dito útil; abstenção massiça de eleitores que sabem que não conseguirão fazer eleger um deputado do partido que apoiam.

Mesmo um sistema alegadamente misto, ou até de círculos uninominais de candidatura, não está livre de provocar igualmente alterações de comportamentos políticos e eleitorais: para além de consistirem numa fórmula matemática, círculos, dimensão do órgão a eleger, etc., os sistemas eleitorais alteram também comportamentos dos eleitores, em termos que podem não ser politicamente neutros nem os mais democráticos.

É significativo que no Reino Unido esteja criada a Charter 88 para uma «democracia moderna e justa» e que exista vasta contestação do sistema eleitoral. Em Portugal, o sistema eleitoral já não é inteiramente «justo», mas o que se pretende não é torná-lo mais justo ou democrático, ou mais próximo dos eleitores. É antes inculcar a ideia de que seria por aqui que passariam as grandes reformas que o PS não fez e desviar a atenção dos problemas que não está a resolver.