EM FOCO

O PCP, as discriminações
e os critérios jornalísticos


Por
Fernando Correia


Um leitor do «Público» endereçou uma carta ao respectivo Provedor, o jornalista Jorge Wemans, acerca da, em sua opinião, «deficiente» cobertura fotográfica feita nas páginas do jornal a militantes e dirigentes do PCP, «contrastando com o que se passa no tratamento dado a outros partidos». O Provedor foi investigar e a sua resposta, muito clara, dá razão à queixa do leitor: «A desvantagem do PCP é notória!»

(ver «Dirigentes sem rosto», «Público», 6-4-97)


1 - A conclusão do Provedor foi obtida, segundo informa o próprio, através da análise comparativa dos espaços dedicados ao PCP e ao CDS/PP durante Março último, nas secções «Política» e «Sociedade» daquele diário. Os números - e cito o texto de Jorge Wemans - são os seguintes:

«O PCP (incluindo a CDU) foi objecto de 18 notícias (três das quais sob a forma de breves); em contrapartida, o CDS/PP mereceu 34 notícias (10 breves). Fotograficamente: nas quatro vezes que foram ilustradas notícias sobre o PCP, Carlos Carvalhas fez o plano (numa

das quais acompanhado por outros dirigentes do partido); nas 13 vezes que se ilustram textos sobre o PP a situação é mais variada- Manuel Monteiro teve direito a oito fotos, três outros dirigentes surgiram em edições diferentes e dois textos sobre o partido foram acompanhados

de fotos sobre o tema da notícia sem a presença de nenhum dirigente. A desvantagem

do PCP é notória!»


2 - A conclusão está longe de ser surpreendente. Se de surpresa se pode falar, ela reside no facto de, aparentemente, só agora alguém no «Público» ter tomado consciência de uma

realidade cuja evidência se julgaria manifestamente óbvia.

O que, aliás, vem confirmar as vantagens e a utilidade (para os leitores e para os próprios jornalistas) da recente institucionalização no nosso país da figura do Provedor, de cuja intervenção (inseparável das pessoas escolhidas para o cargo), apesar de ainda curta, se deve, em minha opinião, fazer um balanço positivo (refiro-me aos casos do «Diário de Notícias» e do «Público», já que o do «Record» me parece bastante mais anódino).


3 - A investigação do Provedor do «Público» Chegou aos resultados a que chegou. Mas não haverá grandes dúvidas de que se em qualquer outro grande órgão de expansão nacional (diário, semanário, noticiário radiofónico ou jornal televisivo) se procedesse a uma diligência semelhante, as conclusões não seriam muito diferentes: em geral, a «desvantagem» do PCP surge como «notória».

O facto de as coisas serem assim têm conhecidas razões de fundo. Existem uma identificação e uma homogeneidade crescentes (na natureza do poder, nas ideias e nos valores, etc.) entre, por um lado, o sistema económico e político dominante e, por outro lado, o sistema mediático, nomeadamente os grandes meios de comunicação de massa (imprensa, rádio e televisão), cada vez mais comandado por grandes grupos multimedia que inspiram e reproduzem dentro de todo o sistema, incluindo em órgãos de dimensão local ou especializada, as suas normas, gostos, estilos e padrões.

As discriminações contra o PCP derivam em parte, inegavelmente, de razões ligadas à conjuntura e à luta política imediata, ou à eventual pouca simpatia (ou coisa pior) em relação ao PCP deste ou daquele jornalista (geralmente enquadrado, como assalariado, num contexto empresarial e hierárquico que o pressiona nesse sentido), deste ou daquele colunista, deste ou daquele media.

Subjacente a isso, e para que isso aconteça assim, existem outros motivos mais profundos, que têm a ver com o sistema social no seu conjunto, as lutas (incluindo a luta das ideias) que se desenvolvem no seu interior, a natureza de classe das forças em confronto, os interesses que defendem e os objectivos que as movem. O jornalismo, fenómeno eminentemente social e ideológico, não pode ser analisado à margem da sociedade e das lutas sociais.

Mais actual do que nunca - e não obstante as profundíssimas alterações nos meios de produção, distribuição e recepção da informação - permanece a velha tese de Marx (exposta na «Ideologia Alemã») segundo a qual a classe que detém o poder material e os meios para a produção material detém o poder material e os meios para a produção material detém ao mesmo tempo, o poder espiritual e os meios para a produção espiritual, levando a que as ideias dominantes acabem por ser, no essencial, as ideias da classe dominante.


4 - A intermediação entre o plano infra-estrutural a que acabámos de aludir e o plano da actividade jornalística não se faz de uma maneira automática e mecanicista. Por exemplo, existem por vezes contradições entre as forças e as personalidades políticas conjunturalmente dominantes (ligadas ao poder económico permanentemente dominante nas sociedades capitalistas) e o poder mediático (dotado de uma autonomia relativa, que pode ser levada mais ou menos longe). Contradições essas que, no entanto, se acabam por resolver dentro do sistema e sem o pôr em causa.

Mas o que aqui me parece interessante sublinhar é como as citadas razões de fundo se põem, repercutem e incorporam nas próprias cultura e prática profissionais dos jornalistas.

Com base na amostra do mês de Março, o Provedor do Leitor do «Público» conclui que o PCP é discriminado, na medida em que «é menos vezes fonte e notícia do que o PP» (a comparação com este partido justifica-se pela sua semelhante dimensão parlamentar).

Mas Jorge Wemans preocupou-se também em averiguar as causas dessa discriminação. Em sua opinião, «o PCP é prejudicado por três ordens de razões»: em primeiro lugar, «não desenvolve uma política de protagonismo e exposição individual dos seus dirigentes»; em segundo lugar, «não expõe na praça pública questões de estratégia que dividem a sua direcção»; em terceiro lugar, as suas iniciativas políticas e sociais «não constituem surpresa face ao seu passado».

Ora, como «protagonismo, divergência de opinião e surpresa são factores de acrescida atenção informativa e, superlativamente, de registo fotográfico», percebem-se, assim, as razões de uma menor quantidade de notícias sobre o PCP.


5 - Estes pertinentes comentários do Provedor ajudam a tornar claro o quadro da situação e a entender a adequação (não isenta de contradições exploráveis) entre certos critérios jornalísticos e as estratégias do sistema. O que se passa é que a submissão às leis do mercado e a informação da notícia em mercadoria privilegiam os protagonistas e as perfomances individuais em relação aos argumentos e às ideias, preferem a discórdia pública ao debate interno aprofundado, trocam a linearidade da coerência pela surpresa dos desdizimentos e das retratações.

Segundo os critérios jornalísticos dominantes, é este o único caminho - e é, sem dúvida, o caminho mais fácil - para alcançar os objectivos últimos de um jornalismo submetido à lógica e às estratégias empresariais (das grandes empresas, com participação crescente do capital internacional): fazer subir as audiências, crescer a publicidade e aumentar os lucros.

A informação-espectáculo (liderada pela televisão comercial) cria as leis e estabelece as normas; para os que não querem submeter-se, ela tenta impor a solução: ficam de fora, Ou ficam dentro apenas o bocadinho que, quando necessário, permita afirmar que há lugar para todos.


6 - Os factores que são favoráveis a uma «acrescida atenção informativa» acabam por funcionar, implicitamente, como a imposição de certos padrões de comportamento e um estímulo a que a acção dos que buscam (ou, pura e simplesmente, têm direito) a visibilidade mediática se conforme e adapte a esses padrões.

Há os que alegremente se dispõem a isso, e há mesmo aqueles (pessoas, partidos, etc.), atentos, submissos e obrigados às regras do jogo e em objectiva conivência com quem o dirige, que organizam e planeiam toda a sua acção tendo como fito prioritário, quando não é único, o impacte mediático.

Com demasiada frequência, nomeadamente na TV (um meio cujas características técnicas e linguagem incentivam a isso), a obsessão da espectacularidade, cruzada com outros factores (como a cacha, o sensacional, a actualidade confundida com os pseudo-acontecimentos, etc.), funciona como o principal critério de noticiabilidade. O resultado disto é o desfavorecimento de uma informação mais virada para os conteúdos e as contextualizações do que para as formas e as aparências, e a consequente penalização dos que (como o PCP) privilegiam, na sua intervenção, esse tipo de factores.

Tem razão o Provedor ao recomendar que «o "Público" não pode deixar-se ir a reboque da actualidade e das estratégias mediáticas de cada partido». É certo que a questão está longe de se reduzir ao «Público». Mas, pelo menos no que respeita a esta diário, é bom que o aviso - principalmente vindo de quem vem - fique devidamente registado.