EM FOCO

A escalada
da finança na política


Por
Sérgio Ribeiro


Quando, no início do ano e do seu mandato de presidente do Conselho de Ministros da União Europeia (ECOFIN), o holandês Zalm disse que alguns governos tinham procurado, com alguma desmesura e histeria, cumprir os critérios de Maastricht e que não iriam entrar para o Euro, e referia explicitamente Portugal, caiu o Carmo e a Trindade.
Bem mais recentemente, houve outras declarações ainda mais menosprezadoras dos esforços e sacrifícios feitos em nome de um falso "desígnio nacional", ainda mais lesa-soberania nacional, do presidente do Instituto Monetário Europeu e não houve reacções. Não tugiu nenhum Carmo nem mugiu nenhuma Trindade.


O ministro holandês não fez mais que explicitar o que, pelas suas paragens e vizinhanças, há muito é congeminado. Aliás, na sequência lógica e coerente de um processo que não pretende o que se diz pretender. O que, pelas nossas paragens, tantas vezes temos denunciado que tais critérios não eram mais que um pretexto para impor, aos Estados, uma estratégia e políticas.

Ao definirem-se os critérios de convergência nominal, ao fixarem-se os prazos para o seu cumprimento e passagem à terceira fase da UEM, não havia nada de objectivo ou de fundamentado nessa escolha de metas e prazos. Tudo arbitrário. Naturalmente.

Assim era porque o que importava era impor, a todos, as mesmas políticas de privatizações, de afastamento do Estado da actividade económica, de desmantelamento dos serviços públicos, num quadro de liberalismo selvagem contra as economias nacionais e de protecção e de facilitação de acesso a fundos públicos e comunitários para os grupos transnacionais.

Porquê 3% e não 2,5 ou 3,5 para o défice orçamento]?, porquê 60% e não 55 ou 65 para a dívida pública?, porque (veja-se lá!) 1,5 pontos percentuais acima da média dos três melhores resultados par a inflação e não outra fórmula qualquer igualmente rebuscada? Sobretudo, para resumir, porquê os mesmos números e prazos para realidades sociais, económicas, financeiras, monetárias tão variadas e a terem de usar os mesmos instrumentos de maneiras muito diferentes?

Só podia ser para impor, a todos, uma mesma estratégia e as mesmas políticas. A estratégia e as políticas que servem os interesses do capital financeiro transnacional. Mais tarde, as decisões a tomar seriam políticas, e na aparência igualmente arbitrárias, tão arbitrárias como os critérios e a exigência do seu cumprimento.

Numa perspectiva, que está ligada ao governo do senhor Zalm e vizinhos, a questão deve colocar-se assim: entram uns/estes, mesmo que não cumpram, porque sem eles nada feito, não entram outros/aqueles, mesmo que cumpram, porque com eles a moeda única, o Euro, não será suficientemente forte. Numa outra perspectiva, porque pelo menos há mais uma entre "eles", em nuance (porque é sobretudo francesa), que está menos preocupada com a fortaleza do euro do que com a dependência em que ficaria a moeda nacional francesa, o franco, da moeda nacional alemã, o marco, se não for alargado quanto baste o leque das moedas a entrarem para o Euro.

Repare-se na contradição, que não se pode escamotear, das alternativas em presença se equacionarem face ao peso relativo das moedas nacionais, reflexo do peso relativo das economias nacionais, num momento em que se pretende acabar com esses instrumentos/reflexos das economias nacionais reais. A vida é feita de contradições, mas o capitalismo exagera...

Uma vez que o que comanda esta dinâmica parece facilmente identificável no abstracto, o capital financeiro transnacional, uma pergunta pode surgir de imediato: afinal quem são "eles", os que terão cordelinhos na mão?

"Eles" são os políticos e os financeiros, ou melhor, os políticos da finança e os financeiros da política, actuando por vezes em alternância, por vezes em promiscuidade. Nem sempre em inteira consonância... mas só em pormenores, ou nuances, porque, quanto ao fundo, quanto aos grandes objectivos, não há divergência, só há convergência... nominal, monetária, financeira. O social que venha depois, se vier, e que feche a porta!

Ora, o senhor Zalm o tal ministro holandês das finanças, é um de "eles", E tanta celeuma levantaram as suas afirmações, sobretudo entre os confrades que estão, agora, na política, que se chegou a ter a ilusão - para quem é atreito a elas de que havia fortes sezões e cisões. O facto é um certo orgulho nacional ter-se-ia sentido beliscado. Ou houve reacções como se assim fosse.

É certo que estas questões invocam, para alguns - para nós, pois! -, a questão da soberania nacional, o sentido de pátria. O que, apesar de tudo, sempre incomoda os que têm de se justificar arrumando como obsoletos conceitos que não perfilham ou de que têm de fazer tábua rasa. E esse incómodo leva a que aproveitem as oportunidades para mostrar que são tanto ou mais patriotas que os "antieuropeus" (que seríamos nós), que defendem tanto ou mais - e mais porque têm poder para o fazer - as posições nacionais e o bom nome do País.

O senhor Zalm ofereceu, de mão beijada, como se costuma dizer, uma dessas oportunidades, Onde é que se viu um ministrozeco holandês, que nem alemão é, vir dizer quem vai entrar e quem não vai entrar, que Portugal, a Espanha e outros países não entrarão, apesar de lhes elogiar o esforço, não obstante terem feito "os trabalhos de casa"?

No Parlamento Europeu, assistimos à rotineira sessão da comissão dedicada às economias e finanças em que Zalm, como presidente em exercício do Conselho respectivo, veio apresentar-se a conversar com os deputados, e (des)conversa foi ela que o "pobre ministro" ouviu das boas e das bonitas. Sobretudo em castelhano e em português. Qual "clube Med" dos excluídos, qual discriminação!? Nem pensar, e ele que se cuidasse porque há brios em que não se toca... Houve dedos em riste e sincera (nem toda, diga-se de passagem ... ) indignação. Confesso que, cá por dentro, muito me sorri durante essa reunião.

Mas por que é que trago isto de novo à baila e a propósito (se não a despropósito) escrevo de novo sobre o que já tantas e de tantas formas escrevi e que, decerto, em muitas ouras o voltarei ainda a fazer?

É que, sendo o senhor Zalm um político das finanças, muito recentemente veio um financeiro das políticas, o senhor (barão!) Lamfalussy, dizer outras coisas que, em coerência com as reacções que houve em relação ao primeiro, deveriam ter merecido um re-arreganho pátrio.

Então não é que o dito barão, director do Instituto Monetário Europeu, no relatório deste e em declarações públicas, se permite dizer que sim senhor, que os portugueses se têm portado bem mas não é bem assim que ele quer e tem de ser exactamente como ele quer ou então há nota negativa?

Reconhece o director do IME, que é o protótipo de onde sairá o Banco Central Europeu, que, nos últimos anos, o governo português procurou, com grande esforço e sacrifício (dos portugueses), diminuir o défice orçamental, que ele se aproxima dos tais míticos 3% do PIB. Mas, acrescenta o senhor Lamfalussy, isso aconteceu porque aumentaram as receitas e não por terem diminuído as despesas do Estado, como deveria ter sido e ele quer que seja.

Para usar uma imagem futebolística, é como se estivéssemos num campeonato em que, perto do fim da prova, a Federação (ou a Liga) viesse dizer que 6 a 3 não é vitória comparável com 3 a 0. Os clubes necessariamente reagiriam, diriam que não admitiriam que viesse alterar as regras a meio do campeonato, protestariam e afirmariam a sua autodeterminação.

No caso do IME, de Lamfalussy, dos critérios impostos aos Estados-membros, é ainda mais grave. Ele, que não é político eleito directa ou indirectamente por alguém, que é suposto ser um técnico, interpreta, na sua pureza, a estratégia financeira que serve o capital transnacional. E impõe essa interpretação aos Estados-Membros, que têm a sua economia nacional, a sua estrutura política e administrativa, as suas instituições, a sua soberania. Já não é 3% no saldo, como está escrito, mas diminuição nas despesas como Lamfalussy dixit. Não é significativo que esta oportunidade, em que o orgulho nacional foi tão gravemente beliscado, não tenha motivado reacções patrioteiras?

Assim terá (não) acontecido porque a tendência para zero nas despesas, como pretendem os Lamfalussy e companhia, os que não são os financeiros da política, é o verdadeiro busílis da estratégia. O que a dinâmica do capital financeiro transnacional exige é que "eles" consigam tirar o Estado da economia, que diminuam quanto possam as despesas sociais, reflexos financeiros dos direitos sociais, que a edução e a saúde sejam para quem as pague, que as reformas, as incapacidades, "essas coisas", sejam cobertas pelos seguros privados, e de forma que mais capital financeiro se acumule.

O que é tanto mais grave quanto seja diminuta a percentagem dessas despesas sociais nos PIB e quanto menores forem os PIB, e Portugal (os portugueses!) sofre particularmente por ter um baixíssimo numerador a dividir por muito pequeno denominador.

Quem tinha dúvidas, tire-as; quem tinha ilusões, desiluda-se... ou arranje, rápido, ilusões novas.

Mas também acontece que esta imposição não vai ser fácil porque, além dos financeiros da política há os políticos da finanças e há a chamada opinião pública (arranjam cada nome para o povo!). Ora os políticos, por mais financeiros que sejam, não esquecem o desemprego, a situação social, os efeitos sobre a aceitação das suas opções, as sondagens, não podem esquecer a opinião pública. Quando conseguem esquecê-la de dia, aparece-lhes de noite, em pesadelos. Até porque, quando as coisas passam certas marcas, ela faz-se lembrar.

É por isso que Kohl, político da finança, ao enfrentar a situação de mais de 4 milhões de desempregados alemães, não pode fazer como Tietemayer, financeiro da política e presidente do banco central alemão, queria que fosse feito. Há limites de suportabilidade social que faz com que os políticos da finança não coincidam sempre com os financeiros da política (*).

Para além, claro, da força directa, inimaginável (pelos próprios), que têm os trabalhadores, os povos, a "opinião pública", e que não vão descobrindo quanto mais a sociedade em que vivem não vai podendo esconder os seus podres.

Esta é, a meu/nosso ver, a verdadeira questão.


(*) Nesta galeria de nomes não podia faltar, ainda que em nota de pé de página para não estragar (mais) o texto, o senhor de Silguy, comissário das finanças, o mais político dos financeiros ou o mais financeiro dos políticos, que acaba de dar um deplorável espectáculo de malabarismo com números, apregoando sem pudor uma credibilidade que ninguém consegue descortinar nem mesmo a sua colega Bonina, que quase se diria ter exigido, em defesa da sua Itália, "ou há moralidades e não há Euro ou entram todos".