A TALHE DE FOICE


Ordem para matar



A crise dos reféns na embaixada do Japão em Lima terminou num banho de sangue. Numa aparatosa operação de forças especiais do exército, preparada ao milímetro durante todo o tempo em que decorriam conversações com vista a uma «solução pacífica», os reféns foram libertados e os sequestradores todos mortos. Segundo a visão oficial, a lamentar há apenas a morte de um dos 72 reféns, alegadamente de ataque cardíaco, e de dois soldados, ao que tudo indica vítimas do poder de fogo da própria operação.

Se alguma coisa há de espectacular nesta acção é a imensa ingenuidade do comando do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), em tudo contraditória da imagem de «terroristas» e «assassinos» com que o Governo de Fujimori os apresenta.

Não se trata aqui de defender ou apoiar os métodos do MRTA, ou de discutir sequer a sua representatividade, ou falta dela, na sociedade peruana. Mas não se trata, tão pouco, de escamotear a legitimidade de múltiplas formas de luta, ditadas pela especificidade de cada país, desde sempre rotuladas de antidemocráticas pelos detentores do Poder quando travadas fora do quadro em que são os únicos a ditar as regras. Vale a pena lembrar, a título de exemplo, que não há muito tempo o actual Presidente sul-africano, Nelson Mandela, era considerado «terrorista» pela muito democrata primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher; ou que o igualmente muito democrata primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, continua a ter franqueadas todas as portas da não menos democrática civilização cristã e ocidental, não obstante continuar a decretar massacres e a sancionar ocupações de terras palestinianas, por acaso no mais completo desrespeito por sucessivas deliberações da ONU.

O que se trata, isso sim, é deste conceito de democracia reinante, que o cíclico ritual das idas às urnas pretende tornar inquestionável. Como se bastasse o direito de voto para a efectiva igualdade de direitos. Como se a miséria, a desinformação, o obscurantismo, as pressões económicas (e outras) nada tivessem a ver com o assunto. Como se um governo, lá por ser eleito, fosse por definição democrático.

Umas réstias de pudor levaram a adjectivar de «democracias musculadas» os regimes como os de Fujimori. Pouco importa que metade da população peruana (doze milhões de pessoas) viva abaixo do limiar da pobreza, ou que os presos políticos (e comuns que fossem) se encontrem em condições desumanas. Pouco importa que se arrastem conversações ditas de procura de soluções pacíficas enquanto se estende o rastilho que tudo há-de fazer explodir. Pouco importa que os «terroristas» fossem jovens revoltados com um sistema injusto. Menos importa ainda que estivessem desarmados no momento do assalto e tivessem procurado render-se.

A ordem era para matar e essa foi, desde a primeira hora, a única opção de Fujimori.

O mundo civilizado aplaudiu e respirou de alívio. Inebriado com o sucesso, Fujimori diz-se pronto a exportar os seus métodos científicos. No Brasil já tem seguidores: um latifundiário aconselhou o Presidente Henrique Cardoso a aplicar a receita aos Sem-Terra.

As democracias musculadas preparam-se para dar as boas vindas ao maravilhoso século XXI que aí vem.


AF