Registos Magnéticos
Por Francisco Costa
Algures a semana passada, numa das últimas emissões do programa
«Falatório» - esta conduzida
pela jornalista Clara Ferreira Alves foi tempo de se falar
dos problemas da terra e da Reforma Agrária no Brasil, com as
presenças de Sebastião Salgado, Chico Buarque
de Hollanda e José Saramago.
Uma emissão programada com raro sentido de oportunidade, não
apenas porque nessa ocasião estava a ser lançado entre nós o
livro «Terra» (da autoria
do primeiro daqueles ilustres convidados) mas também porque,
naquele próprio dia, chegava a Brasília a manifestação de
outros não menos ilustres milhares e milhares de participantes,
vindos de todos os pontos do Brasil, empenhados a fundo na luta
do Movimento dos Sem Terra naquele
país. Um facto noticioso que, em circunstâncias normais, teria
merecido um impacte muito maior nos Telejornais das televisões,
caso estas se preocupassem mais com a explicação e o
enquadramento informativo dos sofrimentos do género humano em
várias partes do Mundo e não, sobretudo, com a sua tantas vezes
despudorada exploração em termos de imagem e baixo
sensacionalismo.
Por esse motivo e também porque a emissão de «Falatório»
foi para o ar, como é costume, com aquele ar de semi-
«clandestinidade» que lhe é dada pela hora de transmissão
(acabou depois da uma e um quarto da manhã!) e pelo canal
escolhido do nosso serviço público (a RTP 2), aqui ficam, com a
devida vénia, alguns registos magnéticos do que ali foi dito e
ouvido. Para que não deixe de saber-se e não venha a
esquecer-se!
«( ) há um ano atrás, exactamente no dia de hoje, foram assassinados 19 trabalhadores rurais e, até hoje, ninguém foi julgado, uma impunidade total no Brasil. E eu acho que esta luta pela terra no Brasil necessita desta solidariedade.»
Sebastião Salgado
«Esta Reforma Agrária que se deseja e da qual se fala no
Brasil, pelo menos desde 1946 - com a intenção oficialmente
declarada de que é necessário fazê-la durante 50 anos
falou-se nela, para não se chegar a coisa nenhuma. (
)
Metade desses 800 milhões de hectares são susceptíveis de
cultivo - há um aproveitamento de grande parte disso para a
pecuária, o que está demonstrado que é um sub-aproveitamento
da potencialidade produtiva da terra e há também o lado
humano da questão (sem o qual nada disto teria sentido), que é
a existência de cerca de 5 milhões de famílias de camponeses
que procuram terra e que, se não a tiverem, estarão condenados
à míngua ou a emigrar para as grandes cidades.»
José Saramago
«Existe uma coisa muito interessante: nós temos um Presidente,
Fernando Henrique Cardoso, que é um homem que veio da esquerda
brasileira, eleito com bastantes votos da esquerda. Tenho a
certeza de que ele poderia fazer uma Reforma Agrária, mas ele
não tem bancada (parlamentar). É um homem que é obrigado a
contar com votos da direita principalmente da direita da
terra, da direita tradicional para fazer passar outros
projectos que comprometem, de uma certa forma, a Reforma Agrária
que ele poderia ter feito!»
Sebastião Salgado
«Será que ainda faz sentido, num lugar destes (o Brasil, o
Movimento dos Sem Terra), falar em esquerda de que agora
não se fala e em comunismo e em Reforma Agrária,
palavras abandonadas nos últimos tempos?»
Clara Ferreira Alves
«(
) Demonizando imediatamente o Movimento dos Sem
Terra, assiste-se às ocupações, que são reprimidas a tiro, e
não só pela Polícia Militar, pelos capangas a soldo dos
latifundiários! É que parece "não ter sentido"
falar de Reforma Agrária ou de comunismo ou de tudo isso
mas a verdade é que tem todo o sentido continuar a falar da
repressão que se faz e que conserva os mesmos nomes:
latifúndio, polícia! É que aqui (na Europa), também não há
Paraíso nenhum, porque há 18 milhões de desempregados que são
subsidiados para se manterem desempregados, como os agricultores
são subsidiados para não cultivar! Agora mesmo, a União
Europeia quer arrancar em Espanha 8 milhões de oliveiras!»
José Saramago
«(o que falta hoje, ainda, ao Brasil democrático) é a
justiça social! (
) há uma péssima distribuição de
renda (rendimento, N. da R.), péssima distribuição de
terras
O que havia de mais preocupante, ultimamente, era
uma certa apatia, uma falta de perspectiva para a oposição,
para a actividade política independente do Governo. (
) E o
Movimento Sem Terra, independente de qualquer partido, quase
milagrosamente organizado no país inteiro, saíndo de vários
pontos do país, chegando hoje a Brasília, é apoiado por grande
parte da opinião pública brasileira.»
Chico Buarque
«É preciso dizer que houve uma pesquisa de opinião na
"Folha de S. Paulo" da semana passada onde 92% dos
brasileiros são a favor da Reforma Agrária quer dizer,
uma maioria praticamente absoluta e, entre os 8% que
ficaram, 6% não opinaram e 2% eram contra!»
Sebastião Salgado
«Eu sei que tudo isto incomoda os estetas do pós-modernismo,
porque os perturba naquilo que eles consideram ser a sua
tranquilidade - e supõe-se que definitiva, uma vez que o Outro
decretou o "fim das ideologias"! Mas não é assim: as
coisas estão todas aí, tentar fazer de conta que elas não
existem ou pôr-lhes uma lousa em cima à espera que elas
sufoquem, é tempo perdido!»
José Saramago
«Quando o Movimento (dos Sem Terra) obtém terra na luta
(aproximadamente 180 a 200 mil famílias), onde ele se instala,
as propriedades agrícolas que se transformam em cooperativas
são as unidades agrícolas mais modernas da região, que estão
capitalizadas, com capacidade de comercialização de produtos
muito interessante, com níveis de rentabilidade comparáveis aos
da Europa, ao passo que a estrutura agrária tradicional
brasileira é uma estrutura praticamente feudal, sem nenhuma
produtividade.»
Sebastião Salgado
«90% da humanidade vive de maneira difícil. Quando eu estou
fotografando isto, eu não estou fazendo nada de excepção: eu
estou fotografando o "normal" da vida! Porque, no
máximo, só 10% da população do planeta vive com protecção
social, vive bem, não tem muita preocupação. (
) Quando
eu fotografei esse livro sobre os trabalhadores, a maioria das
pessoas me dissseram: ah! você fotografou o 3º. Mundo! Olhe: eu
fotografei o "3º. Mundo" onde a metade é aqui, no
mundo rico: a França, a Espanha, Portugal, a Itália
»
Sebastião Salgado
«S. Paulo tem, neste momento, 18 milhões de habitantes - cerca
de duas vezes, praticamente, a população de Portugal
muitos deles vieram do interior, porque não tinham modo de
trabalhar, chegam à cidade e as famílias que chegam à cidade
destroem-se praticamente. Entra-se na deliquência, entra-se na
criminalização das relações inter-familiares. (
) Não
se trata de salvar esta parte da Humanidade por uma espécie de
regresso rousseauneano ao campo, trata-se, sim, de criar
condições para que se fixem no campo famílias que não querem
saír de lá.»
José Saramago
«No ano passado, eu estava discutindo com alguns vereadores
do PT que me estavam explicando que, para um vereador da direita
ganhar em S. Paulo com maioria, ele precisa de gastar 5 milhões
de dólares. E o salário dele acumulado em toda a vida de
vereador jamais chegará a 5 milhões de dólares! Então ele
representa outros interesses (que os dão directamente) e, na
hora de votar, ele compra o voto: ele compra o voto através de
uma sanduíche que leva na favela, de uma camioneta que vai
prestar um serviço dentário e em que a pessoa assina o
compromisso de votar
e ele é eleito! Que sistema
democrático é este?»
Sebastião Salgado
«E porque é que havemos de ter medo da palavra
"militância"?»
José Saramago
«Posso contar-lhe um exemplo fabuloso de "democracia
cultural" (no Brasil) aquando da apresentação do livro
"Terra", da exposição "Terra" que
deveria ser feita no Memorial da América Latina e que foi
censurada! E, fabuloso (!), o local que nós tivemos para fazer a
apresentação foi do "Unibanco", que é dos maiores
bancos do Brasil
»
Sebastião Salgado
(
) o que é falacioso é o sistema económico, o que se
chama hoje o neo-liberalismo, que está imperando no Brasil e em
todo o mundo, ao qual se dá o nome de Democracia. Quer dizer: a
Liberdade, fica sendo a Liberdade do Mercado, a Liberdade do
"ganha quem pode"
»
Chico Buarque
«Falando de racismo, eu acho que o Brasil é um país
profundamente racista. Existe muito racismo no Brasil. O branco
brasileiro é profundamente racista. É um racismo um pouco
"simpático", disfarçado, mas é racista. Existe um
racismo também social, no Brasil, uma grande descriminação de
classes, enorme, a tal ponto de se afirmar que os Sem Terra não
trabalham, os Sem Terra são marginais, vagabundos quando,
na realidade, ele é o único trabalhador. O proprietário da
terra nunca foi na terra, no Brasil, ou quase nunca, quer dizer,
quem trabalha é quem está lutando pela terra.»
Sebastião Salgado
«No final do ano passado, reuniu-se em Brasília o Tribunal
Internacional da Opinião Pública - de cujo júri eu tive a
honra de fazer parte que julgou exactamente a chacina de
Eldorado dos Carajás, e o efeito que isso teve na comunicação
social foi mínimo! Como é que podia ser outro, se aquilo que
estava a ser posto ali em causa era justamente o latifúndio e
proprietários de jornais e de canais de televisão são
justamente aqueles que dizem: "essa notícia dá-se em 30
linhas". E já está! E a notícia morre! Aquilo que nos
pareceu a todos que iria ser a denúncia do que se passou em
Eldorado dos Carajás, as fotos, o vídeo (
) não só não
teve consequências como a Polítia Militar processa
trabalhadores que estavam ali, alegando "provovação"
e "agressão" quer dizer, foram mortos 19
camponeses que não levavam, como armas, senão pedras, um pau,
uma foice ou instrumentos do próprio trabalho
»
José Saramago