EM FOCO

Apelos à ordem
no dia da Liberdade


Por João Amaral



Nas comemorações do 25 de Abril realizadas na Assembleia da República, o PSD interveio para fazer um apelo à "autoridade do Estado". Esse apelo teve um eco natural no discurso do CDS/PP, que foi o discurso de evocação do império colonial e dos seus méritos, contraposto ao que o PP considerou cedência " por conveniência ou por desgaste" do império aos "ventos da história" soprados pelas "potências americana e soviética". Ordem e império reencontraram-se, pela mão do PSD e do PP, e um certo sujeito, oriundo de Santa Comba Dão, deve ter sorrido, lá na tumba onde habita ...


Até aqui, está-se no domínio do previsível. Mas, o que será menos previsível é que esse apelo à autoridade tenha encontrado lugar noutros discursos, particularmente no discurso do Presidente da República e no discurso do Presidente da Assembleia da República.

É justo evidenciar que o registo destes dois discursos é substancialmente diferente do discurso que em nome do PSD foi feito pelo Deputado Pacheco Pereira. Mas o efeito público na parte em que confluem no apelo à autoridade pode dar a aparência de uma convergência. Precisamente porque ela não existe,ou não existe nos termos reducionistas de um simples "apelo à ordem", é que se torna importante e útil alguma reflexão sobre a questão.

A parte do discurso de Jorge Sampaio que se refere a esta questão começa pela afirmação de que " é necessário que o Estado exerça a sua autoridade democrática, legitimada pelo votos dos eleitores". A ideia é depois desenvolvida em três planos: " A democracia é o regime da tolerância mas não da permissividade ou do demissionismo; é o regime da liberdade, mas não da insegurança; é o regime da negociação, do diálogo, da concertação e se possível do consenso, mas também da decisão, da iniciativa, das reformas, da autoridade democrática".

Quanto ao discurso do Presidente da Assembleia da República, ele é marcado pelo acentuado pessimismo que vem caracterizando as suas últimas intervenções públicas. O discurso faz primeiro uma análise sobre a actual vulnerabilidade da liberdade. Entre as causas apontadas, refere-se o facto de " se ter semeado e exaltado tanto e durante tanto tempo, o espírito de desobediência contra o autoritarismo" e ainda o facto de com a sociedade de informação " as mais elementares revelações da autoridade passaram a ficar à mercê da contestação da sociedade civil, cada vez mais reivindicativa e brigona".

A frase chave do pensamento expresso pelo Presidente Almeida Santos é longa, mas merece ser transcrita: " Destruir sem substituir, é encomendar a prazo o que julgávamos ter destruído; penso concretamente no autoritarismo que destruímos, sem a imediata preocupação de o substituirmos pela autoridade; (...) põe-se agora a questão de saber (...) se não deixamos ir até longe de mais a não preservação da autoridade legítima e se, assim procedendo, não soltámos perigosamente os domínios da desobediência e da rebelião civil (...)".

A grande diferença entre, por um lado os discursos dos Presidentes Jorge Sampaio e Almeida Santos, e por outro lado, o discurso de Pacheco Pereira, é que quer o Presidente da República, quer o Presidente da Assembleia, afirmam que a liberdade é indissociável da democracia social. Almeida Santos diz : " os novos inimigos da liberdade são a pobreza, a exclusão social, a ignorância, o desemprego, a droga, os conflitos étnicos, a desumanização das cidades, a desertificação do mundo rural, a angústia ecológica, o amoralismo comportamental, enfim, a insegurança como ponto de encontro de tudo isto".

Quanto ao Presidente da República afirma : "os direitos sociais não têm (...) lugar num segundo tempo, depois dos direitos políticos; uns e outros condicionam-se reciprocamente.

Já o discurso do PSD é feito sem qualquer cedência ao domínio do social. Pacheco Pereira afirma : "No Estado (...) não há meia ordem; ou há ordem ou não há". Para explicitar porque é que na democracia representativa ( ela, que " assenta numa delegação de autoridade a quem nos representa e governa") a autoridade deve ser exercida, Pacheco Pereira é transparente a lapidar: " a autoridade numa democracia é penhor de que a minha casa é protegida (...)". Segue-se uma lista de outras coisas que a autoridade protege: o nome, a palavra, o voto, a parte do destino colectivo segundo o que cada um pensa e deseja. Pacheco Pereira invoca a liberdade para exigir autoridade; na realidade, o que defende é o individualismo e o liberalismo, garantidos por uma autoridade, que, por não ter limites, resvala naturalmente para o autoritarismo.


Temer o pior

As diferenças dos discursos não podem fazer esquecer a coincidência no tratamento do tema da autoridade do Estado. Porquê ? Há alguma crise efectiva do Estado, que justifique este apelo à ordem?

Pacheco Pereira refere a questão dos polícias, e da manifestação que realizaram no Terreiro do Paço. Mas no tempo do cavaquismo, também houve manifestações de polícias. Não só a do Terreiro do Paço, que originou a cena da rega dos manifestantes pelo corpo de intervenção ( e onde não houve autoridade do Estado, pelo contrário, a rega tornou-se numa paródia, que ridicularizou os meios de intervenção da polícia e as autoridades que ordenaram a acção, e que mais tarde foram substituídos, ao mesmo tempo que algumas reivindicações dos polícias, como a de terem associações profissionais, eram atendidas).Mas além dessa manifestação, houve outras, onde não houve nenhuma espécie de repressão. Então, que há de novo nesta manifestação, realizada agora com o Governo do PS, mas com os mesmos objectivos e reivindicações que as realizadas contra os Governos PSD?

A prova de que não há crise de "autoridade do Estado" está por exemplo no caso chamado "GOV.PT". É o caso da ligação do Governo à INTERNET. O endereço do Governo na INTERNET, cuja página tem o curioso título de "Governo em diálogo", usava uma denominação de subdomínio que levanta problemas técnicos, pela sua coincidência com a denominação de um domínio. Por isso, desde o início, a FCCN (Fundação para a Computação Científica Nacional) só aceitou aquele endereço provisoriamente. Durante onze meses multiplicaram-se insistências para a alteração do endereço. Até que foi dado ao CEGER (Centro de Gestão da Rede Informática do Governo) um prazo para fazer a alteração. O prazo terminou sem a alteração e o Conselho Executivo da FCCN mandou desactivar o endereço (não a ligação à INTERNET, mas tão somente o endereço). Poucos dias depois, o Conselho Executivo da FCCN era demitido e o Governo continuou a usar o "GOV.PT".

Não se discute aqui a questão de saber se Portugal deve aceitar ou não limitações ao uso do "Gov", embora esta seja uma questão técnica, não "patriótica"... O que se discute é a prepotência implícita na acção de exoneração do Conselho Executivo. Há quem diga que essa operação também serve para facilitar a constituição de uma associação para esvaziar a FCCN e permitir a entrada da agora privatizada Portugal Telecom na gestão da rede académica, dando-lhe um papel privilegiado, conforme é descrito em artigo do "Público", assinado pelo ex-Presidente do Conselho Executivo da FCCN. Mas, seja como for, o que é relevante neste caso, para o que agora nos interessa, é o autoritarismo. Afinal, o Governo não tem nenhum défice de autoridade...

E mesmo no caso da manifestação de polícias, o Governo PS não fez a cena de "molhados" que o governo do PSD fez, mas não hesitou em mandar levantar processos disciplinares e em fazer participações criminais, tal como fez o governo PSD...

Não havendo qualquer espécie de crise de autoridade do Estado, só há uma explicação para a existência desta preocupação, generalizada a pessoas tão diferentes como os três oradores atrás referidos, e que os leva a elegerem o tema como um dos temas fulcrais dos respectivos discursos no 25 de Abril.

Essa explicação chama-se futuro. Não são os problemas que hoje existem que leva aquelas personalidades a este tipo de preocupações. São os problemas que vão existir em prazo relativamente curto e que hoje já se adivinham.

Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, com as responsabilidades institucionais que têm, mostram que temem o pior do futuro próximo. Não é difícil de adivinhar o que temem. Temem o agravamento do desemprego, com uma crise industrial dramática (incluindo nas indústrias tradicionais, como os têxteis, face à concorrência acrescida que vão sofrer). Temem novas bolsas de pobreza. Temem o florescimento de fenómenos de xenofobia e racismo. Temem os protestos populares que vão decorrer forçosamente dessa situação.

Tem o pior e não vislumbram nenhuma solução alternativa. É por isso que centram as suas preocupações na questão da autoridade do Estado.

Temos aqui assim duas conclusões assinaláveis. Primeira: as mais altas instâncias do Estado têm uma forte convicção de que os resultados da aplicação dos critérios de Maastricht e da adesão à moeda única vão ser socialmente graves e vão provocar fortes reacções. Segunda conclusão: a resposta que estão a adivinhar para a situação é o uso da força.

Para o PCP, a defesa das liberdades reassume assim uma dimensão mais forte. O discurso político do PCP vai ter de responder a esta "abertura ao Estado musculado". O item liberdades tem de ser chamado a primeiro plano.

O debate exige um enfrentamento ideológico. Ao contrário do que está implícito em certas componentes daqueles discursos, a resistência e o protesto não ameaçam a liberdade. Pelo contrário: as liberdades existem para serem usadas, em defesa de uma vida melhor, para combater a injustiça, para lutar pela dignidade humana.

No 25 de Abril, dia da liberdade, não são os apelos à ordem que são necessários. São sim os apelos à justiça e ao desenvolvimento.