EM FOCO

Crónicas da Rússia

A voz do dono

Por Daniel Rosário


Com as mudanças políticas registadas na Rússia nos últimos anos chegou aquilo que muitos correram a chamar de "liberdade". E, claro, a "liberdade de imprensa", que tem na televisão uma excelente prova de todo o seu esplendor.

Longe de pretender fazer crítica televisa, género que não está ao alcance de todos, este artigo pretende apenas reflectir, parcamente, a programação da televisão e o conteúdo dos serviços noticiosos. A classificação, avaliação e julgamento ficará ao critério de cada um.

Notar apenas que, à semelhança do que fez por ocasião das últimas eleições presidenciais, em que a esmagadora maioria dos orgãos de comunicação social assumiu abertamente o apoio a Ieltsine, os media russos tomam partido. Ou por alguém em concreto, ou por uma simples manutenção de um estilo de vida que se vai tentanto impor.

"Russos nos EUA" - o fascínio pela "Terra das Oportunidades" tem vindo a aumentar de forma inversamente proporcional ao declínio do nível de vida da população. Preocupada com as audiências, e com a manutenção do novo "modus vivendi", a TV esforça-se por levar às pessoas a informação de que necessitam. Nada melhor que um programa dedicado aos concidadãos que, felizes, lá conseguiram partir para os Estados Unidos e aí levam uma vida de sonho, isto é, fora da realidade. Esta edição foi dedicada à visita a uma senhora que casou com um cidadão americano de origem italiana e que vive orgulhosamente na sua casinha de dois andares nos subúrbios de New Jersey. Passeia as câmaras pela casa, mostra os dois carros, o rapaz da mercearia que vem trazer as compras e com quem se entende num inglês rudimentar, o marido salvador, que não percebe uma palavra de russo, a ver televisão... Uma família feliz. O espectador interroga-se: "o que é que eu ainda faço aqui?...".

Concurso de beleza - a vida não podem ser só chatices. Queremos sonhar. Antes, com a vida que não temos, agora, com o corpo que não conseguimos ter. Desfilam as beldades, tudo "by the book".

Numa extraordinária demonstração de consciência cívica e intervenção social, ciente de que o seu papel não deve ser apenas o de embrutecer os espectadores, há que dar uma pitada de realidade. Entrevista-se o júri cujo porta-voz é um conhecido senhor Vladimir, acompanhado pela esposa que diz que quem devia ter ganho "era a menina nº 10, aquela assim...", diz, enquanto descreve com a mãos os contornos de uma guitarra.

Se no ocidente já "mataram" mediaticamente este Vladimir (há quanto tempo é que ele não aparece na tv a anunciar maridos para toadas a mulheres e vodka para todos os maridos?), a tv russa tem a preocupação de não deixar que o povo se esqueça o senhor. É que ainda pode vir a ser útil. O seu apelido é Jirinovski.


Informação. Missão: (de)formar

Os noticiários são pérolas de rigor, isenção e seriedade. Não olham a meios para manter o cidadão actualizado sobre o que se passa no seu país e no mundo. Claro que também não se inibem de "dar umas pistas" para ajudar à compreensão dos vários fenómenos. ´É que a realidade é tão complicada... Vários flashes:

- Reportagem sobre uma cidade siberiana ao lado da qual se encontra "um dos maiores depósitos de armamento do mundo". Depois de falar da falta de condições de segurança, a câmara filma os carris que saem da zona militar e a jornalista comenta: "... foi por aqui que durante muitos anos saíram as armas que sustentaram conflitos armados por todo o mundo: no Afeganistão, em Cuba, na ex-Jugoslávia e, agora, na Albânia".

-O mausoléu de Lenine voltou a abrir ao público depois de estar encerrado para manutenção. "Na reabertura podiam ver-se alguns visitantes, na maioria estrangeiros, que não querem deixar Moscovo sem ver a pitoresca exposição", comenta o pivot. Esqueceu-se de dizer que, na véspera, a Duma tinha rejeitado por apenas 10 votos uma proposta que pretendia interditar legalmente qualquer tentativa de mexida no Mausoléu.

-Em Tula, cidade famosa pela sua indústria militar, realizaram-se eleições intercalares para a eleição do deputado local à Duma Estatal. Ganhou o candidato comunista, que bateu, entre outros, o candidato do general Lebed e a mulher de um mafioso (que procurava assim obter a imunidade parlamentar, mas isso é outra história...). Comentário da televisão: "Tula é uma cidade que sempre sofreu muito e sempre passou muita fome. Passou fome com Staline, com Krutchov e com Brejnev e votou sempre "Onde devia". Como Tula ainda passa fome...".

-Na perspectiva da "Acção Nacional de Protesto" organizada pelos sindicatos com o apoio do Partido Comunista da Federação Russa a TV foi incansável na cobertura dos preparativos.

Num dos dias que antecedeu os protestos fala-se com o responsável pela segurança que explica exaustivamente e num tom marcial q.b. as medidas que estão a ser tomadas. A fechar, passa um a pequena peça sobre os treinos da polícia anti-motim. Já agora, qual o motivo da acção de protesto?

No outro dia entrevista-se o substituto do presidente da Câmara de Moscovo que se diz confiante na manutenção da ordem e no pacifismo dos manifestantes. Até porque, acrescenta, se houver algum problema lá estarão as forças da ordem para a manter. Mas afinal, quais eram os motivos dos protestos?

Na véspera mostram-se mapas das ruas cortadas, o responsável da segurança anuncia que estarão destacados 16 mil efectivos, entre polícias e militares, e que recorrerão ao uso de matracas, gás lacrimogéneo e canhões de água "se necessário". Então e...

A peça seguinte vai mostrando alguns polícias de trânsito, rapazes honestos e trabalhadores, enquanto a voz off comenta que "os muitos polícias que estarão destacados para assegurar a ordem e evitar distúrbios durante os protestos passam por uma situação semelhante à dos manifestantes, pois também eles, que estarão lá a cumprir o seu dever, têm muitos meses de salários em atraso". Ah, então deve ser isso, os salários em atraso!

-Actualidade internacional: em França milhares de trabalhadores em greve saem à rua para se manifestarem contra "a política do governo". Explica o correspondente que os franceses se manifestam "tanto" porque "é um dos poucos países da Europa em que os sindicatos são fortes porque os trabalhadores têm muitas regalias sociais e agora não as querem perder". Conclusão: "14 anos de socialismo em França não resolveram nada, antes pelo contrário (sic)". Ao mesmo tempo em diferentes países europeus decorriam grandes, e em alguns casos violentas, manifestações, mas isso já não importa, pois não entra na definição de (des)informação da his master voice.