A TALHE DE FOICE


Porto inglês


A RTP-2 dedicou a semana passada uma surpreendente atenção ao Vinho do Porto através de um programa - aliás de origem estrangeira - transmitido com a solenidade de um produto cultural.

Pegando em algumas das famílias que há séculos se instalaram no Vale do Douro para dominar a produção e a comercialização do vinho do Porto, o programa visitou demoradamente as mansões, as vidas e os hábitos desses clãs ingleses, enxertou no alinhamento diversos planos do Vale e do Rio e fez uma história do Vinho do Porto.

Uma história que começa por apresentar o Vale do Douro como um desconhecido paraíso vinícola que os ingleses descobriram há três séculos, quando ao Porto se deslocaram para comerciar bacalhau.

Com os sentidos talvez mais apurados pelo intimidade que mantinham com o peixe salgado, esses geniais ingleses de há três séculos cheiraram logo o que os broncos autóctones não toparam em séculos de vinhaça: a finíssima qualidade do Vinho do Porto.

Obviamente que se afigurou dispiciendo à reportagem o facto de, por alturas da chegada dos ingleses do bacalhau, o precioso néctar andar há já séculos embarcado pelas rotas da Índia - caminhos, aliás, que levaram ao seu apuramento, quando ao mosto do Vale do Douro se lhe cortou a fermentação com aguardente vinícola para lhe garantir a longevidade nas longas viagens marítimas.

Não. Quem descobriu o Vinho do Porto foram os ingleses - fazendo, aliás, juz aos seus conhecidos talentos vinícolas exercitados na soalheira Inglaterra. Prova-o o facto de terem sido eles que lhe deram o nome, se apropriaram da produção, o exportaram aos tonéis, o beberam às pipas, o espalharam por todo o mundo onde houvesse um inglês.

Com dinheiro para o comprar, evidentemente.

Feito o enquadramento, o programa mostrou os obreiros concretos do grande milagre.

Lá os vimos nas suas mansões à beira-rio - que eles próprios classificam de «estilo colonial» -, recebendo visitas ilustres, decorando interiores com as suas fantasias, almoçando às quartas-feiras nos seus clubes privados, convivendo uns com os outros nas suas festas restritas, saindo dos clubes do Porto quando há indígenas a mais, apesar de ricos como eles.

Lá lhes vimos os filhos, nascidos em Portugal, educados em Inglaterra e aprendendo pelo meio o português com a criadagem, com quem almoçam na cozinha durante a infância até chegar a idade de ascenderem à civilização da mesa paterna e dos estudos na velha Albion.

Lá os vimos a mostrar retratos de avoengos comerciantes como quem expõe dinastias, a considerarem-se portugueses pelos prazeres que o dinheiro aqui lhes dá.

Todo este trajecto, todas estas mordomias, todo este consentido elitismo condu-los, com extraordinária sinceridade, à convicção de serem os inventores do Vinho do Porto.

Outra coisa não seria de esperar de uma reportagem que destila mais propaganda que vinho.

O que se estranha é que a RTP, canal público de televisão, o transmita sem enquadramento nem comentários, transformando-o na última palavra sobre o tema e com chancela de informação de qualidade.

Deixando na sombra das caves «à inglesa», não apenas a verdade histórica, como os graves problemas que há anos assolam o Vinho do Porto, fale-se das dificuldades dos pequenos vinicultores (que garantem o grosso da produção), fale-se do controle crescente que nele têm as multinacionais de bebidas, a quem os Governos de Cavaco Silva, com a conivência do PS e do PP, procuraram escancarar as portas em detrimento dos interesses nacionais.

Quem seriamente faz e defende o Vinho do Porto continua a não ser este punhado de abencerragens coloniais que, aliás, não movimentam hoje mais de 10% da produção.

Mas, pelos vistos, ainda conseguem movimentar um canal público de televisão.

HC