INTERNACIONAL

Congo-Kinshasa


Conflito inter-imperialista,
caudilhismo
ou Revolução ?


Por
José Bernardino



Daqui a um período de tempo, relativamente curto suponho, a vida facilitará a resposta a estas interrogações. Entretanto já existem elementos bastantes para se poderem vislumbrar pistas esclarecedoras.


Mesmo considerando a insuficiência ou a inexistência de informações fidedignas, a contradição entre as notícias segundo os órgãos de informação ou a origem, as mistificações deliberadas - não é arriscado avançar que, na grande complexidade da situação e interinfluência de factores diversos, as três interrogações têm uma resposta afirmativa.

Para a economia desta reflexão não se vão aprofundar aqui as duas primeiras.

É por demais evidente o conflito dos interesses imperialistas da França e dos EUA no Zaire, designadamente no sector mineiro do oriente e com as suas incomensuráveis jazidas de cobre, cobalto ou diamantes. Os potentados económicos americanos pretendem fazer aos franceses o mesmo que estes fizeram em grande parte aos belgas: apropriar-se do saque neocolonialista das riquezas do Zaire e dos seus povos.

Basta constatar a celeridade com que foram feitas concessões mineiras a grandes grupos económicos estadunidenses pela Aliança líderada por Laurent Kabila, quando não estava sequer definida a questão militar ou do Poder, para aferir o grau de probabilidade (para não dizer de certeza) de que o imperialismo americano embarcou no campo da Aliança.

Para aferir quem estava agora do lado de Mobutu é elucidativo o trajecto do fantoche corrupto que é Mobutu, "herdado" pela França neocolonial e pela CIA da Bélgica colonial. Os mais novos não sabem, outros esqueceram ou tentaram apagar, que o tenebroso personagem começou por ser o sargento Joseph-Désiré, do exército colonial belga, antes se tornar o "general", o "leopardo", com o apoio dos "defensores dos direitos humanos" da Europa e da América. Cola-se oportunistamente, como o tempo revelou, ao movimento de libertação congolês chegando a ser secretário particular de Patrice Lumumba, em cujo primeiro governo pós independência alcançou a chefia do Estado Maior do Exército, em Junho de 1960. Contribui com o exército para o derrube e assassinato de Lumumba, entregando-o a Tchombé, acabando por alijar os seus aliados Kasavubu e Tchombé com o golpe de estado de 1965, altura em que inicia o seu regime despótico e corrupto que agora teve fim. Tenta camuflar a sua dependência do neocolonialismo francês com uma operação cosmética: em 1971 muda o nome do país e da toponímia dos centros urbanos, sabendo com isso ir ao encontro da vontade das massas de apagar símbolos da dominação colonial, para demonstrar o seu ardente nacionalismo. Vai mais longe: decreta administrativamente a substituição dos nomes próprios de origem francesa para dialectos do país - desaparece o Joseph-Désiré e surge o seu travesti Mobutu Sesse Seko Ngbendo Wavasa Banga - procurando, de passagem, apagar o seu passado colaboracionista e o seu papel de lacaio do neocolonialismo.

Sem êxito, de resto, a sua prática tornaria transparente que a única diferença consistiu no astronómico aumento da sua riqueza pessoal e da sua clique corrupta. Os recentes desenvolvimentos, o apoio do governo francês (com o propósito de arrastar o da União Europeia, veja-se a declaração da inefável Emma Bonino em apoio de Mobutu !) demonstra aliás quanto os "patrões" reconhecem a sua fidelidade e lhe perdoaram os «pecados», a repressão, a fome e o despojamento da cidadania ao povo.


Um movimento à volta de um líder ?

Quanto à existência duma componente caudilhista, não no sentido fascisante ou caciqueiro mas no da personalização da líderança - neste caso em Laurent Kabila - é evidente. Mas se esta componente multiplica interrogações quanto aos sentidos do prosseguimento do processo, não define se o seu carácter é progressista ou reaccionário. Sabemos que, exceptuando a Argélia e a África do Sul, nos movimentos de libertação em África nos anos 50 e 60 existe uma forte líderança pessoal sem que tal afecte o seu carácter progressista ( cite-se, só como ilustração da amplitude geográfica do fenómeno, os casos dos Keita, no Mali e Senegal, de N’Krumah no Ghana, de Agostinho Neto e Amilcar Cabral em Angola e na Guiné, de Mondlane e Samora Machel em Moçambique ou Nyerere na Tanzânia). Uma das razões de fundo dessa personalização decorre da necessidade de assegurar a coesão do Estado e superar a falta de organização ou inexistência duma classe operária e de condições subjectivas, de organização, do movimento popular.


O conteúdo profundo da revolta

E aqui chegamos à indagação das características revolucionárias que coexistem no processo em curso. Por que motivo o movimento da Aliança líderada por Kabila se inicia no nordeste do país, na zona do Kivu, donde, curiosamente, é originário Lumumba ? Qual a razão da facilidade da progressão das suas tropas a partir da região contígua aos Grandes Lagos até Lumumbashi ( denominada Elisabeteville nos anos sessenta), onde entram praticamente sem resistência ? Por que motivo Lumumbashi se transforma na plataforma de progressão para Kinshasa, a qual não tarda a iniciar-se acabando por se consumar o controlo da capital pouco tempo depois ? Como explicar a ampla participação das massas populares na recepção das unidades insurrectas, a sua cooperação na implantação no terreno e na neutralização das forças armadas mobutistas ?

A opinião aqui defendida é que não se trata apenas duma superioridade bélica ou logística das tropas rebeldes. Estamos em presença de condições objectivas e da manifestação da existência na memória colectiva das massas da luta pela independência e do processo que se seguiu.


Intervenção popular e memória colectiva

De facto a então província oriental foi um dos esteios do movimento de libertação congolês. A região confinante com os Grandes Lagos é a mais importante zona industrial do país, com uma classe operária ligada á exploração mineira. Foi em Katanga e em Elisabeteville que se concretizou a operação Mobutu-Tchombé que derrotou o movimento de libertação. Na memória colectiva das massas da região está toda a luta que conduziu à independência, está o perfil dos seus autores, está também a odiosa repressão que se abateu sobre eles pela contra-revolução: quem esquecerá a exibição pública, em Elizabeteville, de Patrice Lumumba, algemado num jeep, com uma trágica dignidade sabendo que ia ser assassinado.

Muitos dos actuais membros das tropas de Kabila, e ele próprio, estavam do lado do movimento libertador coerente. Refugiaram-se em países vizinhos e voltaram agora a combater. Laurent Kabila recupera, em declarações públicas, consignas, designações e conceitos como se tratasse de um segundo movimento de libertação. Massas populares manifestam o seu repúdio de Mobutu e do que ele significou, dão força a posições de firmeza. As tropas rebeldes combatem desmandos e saques assegurando uma tranquilidade pública que poucos esperariam.

Estes sinais, os aliados que se revelam de um lado e do outro, a reserva da mediação do processo negocial da rendição de Mobutu por um país africano - a África do Sul - enformam uma componente de mudança revolucionária que retoma a república democrática.


E depois da tomada de Kinshasa ?

Mobutu e seu regime já pertencem ao passado o que, só por si, representa uma enorme vitória popular. Entretanto, o futuro permanece cheio de interrogações. São grandes e contraditórios os objectivos, os interesses, de forças e personalidades na frente interna. As ingerências estrangeiras têm largo campo de manobra e poderosos instrumentos de pressão que não vão no sentido da consolidação da democracia e da plena independência. Os problemas étnicos e o calvário dos refugiados constitui um quebra cabeças que não favorece a estabilização.

Porém, havendo uma estreita ligação entre os novos poderes e os povos, se permanecer na memória das massas o que foi e representou o mobutismo, existem bases para se ter confiança num futuro progressista desta segunda república.