EM FOCO

A extradição e o acordo de revisão constitucional


Um retrocesso histórico
de enormes proporções

Por António Filipe



O acordo de revisão constitucional celebrado entre o PS e o PSD, em matéria de extradição, prevê a abertura de excepções aos princípios da não extradição de nacionais e da não extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante. Num país que aboliu a pena de morte por delitos comuns em 1867, tratar-se-ía de um retrocesso histórico de enormes proporções.


A Constituição Portuguesa, na parte do seu artigo 33º que se refere à extradição (que consiste, como se sabe, na entrega de um indivíduo que se encontra no território de um Estado às autoridades de outro Estado, por aí se encontrar arguido ou condenado pela prática de um crime), estabelece quatro princípios que não admitem excepções: Não é admitida a extradição de cidadãos nacionais; não é admitida a extradição por motivos políticos; não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante; a extradição só pode ser determinada pela autoridade judicial.

Foi portanto por imperativo constitucional que Portugal, em 1989, quando aceitou a sua vinculação à Convenção Europeia de Extradição de 1977, formulou reservas a algumas das suas disposições, nos termos previstos na própria Convenção. Assim, no respectivo instrumento de ratificação, Portugal declarou nomeadamente, que não concederia a extradição de pessoas nas seguintes condições: Que devam ser julgadas por um tribunal de excepção ou cumprir uma pena decretada por um tribunal dessa natureza; quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão a pena em condições desumanas; quando reclamadas por infracção a que corresponda pena ou medida de segurança com carácter perpétuo; quando se trate de cidadãos portugueses (usando uma faculdade que a Convenção prevê expressamente); quando ao crime corresponda pena de morte segundo a lei do Estado requerente (termos em que o Estado português recusa expressamente a faculdade prevista na Convenção de proceder à extradição se o Estado requerente der garantias consideradas suficientes de que a pena capital não será executada).


Dos Projectos de Revisão
ao Acordo de Revisão

De entre os projectos de revisão constitucional apresentados, dois deles contém referências à matéria da extradição. O do PCP, que propõe que não haja extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, ou qualquer outra pena que viole o direito à integridade moral e física das pessoas. E o do PS, que propõe uma excepção à não extradição de cidadãos nacionais, admitindo-a nos casos de terrorismo e criminalidade organizada e para Estado membro da União Europeia, quando exista reciprocidade; e que propõe também que não haja extradição por crimes a que corresponda pena de morte ou pena cruel, degradante ou desumana.

Depois de na primeira leitura dos projectos de revisão constitucional o PS ter admitido inclusivamente alargar a sua proposta de proibição expressa da extradição aos crimes a que corresponda prisão perpétua, o texto do acordo de revisão PS/PSD não pode deixar de considerar-se, no mínimo, surpreendente. Assim:

"Quanto ao regime da extradição entende-se imprescindível admitir excepções ao princípio de não extradição de cidadãos portugueses, em condições de reciprocidade, nos casos de terrorismo e criminalidade altamente organizada e para Estado que assegure o respeito dos direitos humanos. Por outro lado, mantendo a regra segundo a qual não há extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou pena ou medida de segurança privativa da liberdade com carácter perpétuo, considera-se que a mesma deve poder ser admitida, a título excepcional, se ao Estado português forem dadas garantias consideradas suficientes de que a pena ou medida de segurança será comutada, substituída por outra de duração limitada ou por qualquer outra forma não executada.

Esta formulação, acordada entre o PS e o PSD, contém dois retrocessos inaceitáveis: A admissão da extradição de nacionais e a admissão de extradição por crimes a que corresponda pena de morte ou de prisão perpétua desde que sejam dadas "garantias" de que essas penas não serão aplicadas.


Argumentos inaceitáveis

Mas quase tão chocantes como as propostas em si, são os argumentos usados por alguns Deputados do PS para as tentar justificar. Não aprovasse a Assembleia da República o acordado entre o PS e o PSD em matéria de extradição, e Portugal, para além de não cumprir compromissos assumidos internacionalmente, tornar-se-ía um refúgio de criminosos procurados por crimes nefandos e ficaria sujeito à condenação internacional por obstaculizar o combate ao crime organizado. Não passam, estes argumentos, de grosseiras falsificações.

Em primeiro lugar, porque o actual texto constitucional não viola qualquer compromisso assumido internacionalmente pelo Estado português. A própria Convenção Europeia de Extradição prevê que os Estados signatários possam formular reservas tendo em atenção o respectivo direito nacional, para além de prever expressamente o direito de cada Estado a não extraditar os seus nacionais, que é aliás reivindicado pela esmagadora maioria dos países do mundo. E mesmo a Convenção de Aplicação dos Acordos de Schengen, frequentemente citada como fundamento para a alteração constitucional, é aplicável sem prejuízo da Convenção Europeia de Extradição e no respeito pelas reservas que cada Estado lhe formulou. Em segundo lugar, porque é inteiramente falso que a não extradição signifique impunidade. De facto, segundo o Código Penal em vigor, a lei penal portuguesa aplica-se a um vasto elenco de crimes praticados fora do território português, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado.

Pergunta-se então: Se um cidadão português, encontrado em Portugal, procurado noutro país por um crime grave, pode ser julgado em Portugal, porque razão há-de ser extraditado? Por falta de confiança nos tribunais portugueses? E porque razão há-de Portugal admitir excepções constitucionais à proibição da extradição de cidadãos nacionais, quando a esmagadora maioria dos países do mundo, incluindo os da União Europeia, o não faz? A resposta é óbvia. A extradição de nacionais não é imposta por qualquer razão de real eficácia no combate à criminalidade, nem por qualquer vinculação internacional, mas está na ordem do dia da Conferência Intergovernamental para a revisão do Tratado de Maastricht como mais um passo para limitar a soberania dos Estados em matéria de Justiça e Assuntos Internos. É quanto basta para que o PS e o PSD, como alunos bem comportados, queiram ser os primeiros a concluir os trabalhos de casa.


Um retrocesso histórico

Mas para além desta questão, tem sido a admissão de extradição por crimes a que corresponda a pena de morte ou prisão perpétua (sobretudo a pena de morte) que tem suscitado, justificadamente, um amplo movimento de opinião pública contra o acordo PS/PSD. Entidades como a Comissão Justiça e Paz, o Fórum Justiça e Liberdades, a Amnistia Internacional e personalidades como Jorge Miranda, Teresa Beleza ou José António Barreiros, fizeram chegar à Comissão Eventual de Revisão Constitucional as suas opiniões frontalmente contrárias à consagração do texto acordado. Vários dirigentes do PS e do PSD a até membros do Governo, apressaram-se já a demarcar-se do seu conteúdo. Porém, o texto do acordo, acima transcrito, não deixa dúvidas quanto à intenção dos subscritores. Portugal admitiria a extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante, desde que fossem dadas garantias de que essa pena não seria aplicada.

Será aceitável que um Estado como Portugal, que há 130 anos aboliu a pena de morte para os crimes comuns e que tem todas as razões para se orgulhar disso, venha a abrir mão da recusa absoluta da pena de morte que a nossa Constituição consagra, em nome de "garantias consideradas suficientes" de que essa pena não seria aplicada? E que garantias seriam essas? Será possível num Estado de Direito garantir que a pena de morte legalmente consagrada não será aplicada, sem pôr em causa a independência do poder judicial? Haverá alguma garantia absoluta da não aplicação da pena de morte onde ela exista? Definitivamente, não há "garantias" que possam tornar aceitável tamanho recuo. A recusa constitucional da pena de morte é uma questão de princípio que não admite excepções.

Se a Constituição passasse a admitir a extradição de arguidos por crimes a que corresponda pena de morte no Estado requisitante, sacrificando um princípio fundamental em nome de conveniências de política externa, estaríamos perante um retrocesso histórico de enormes proporções. Mas estamos ainda a tempo de o evitar.