A TALHE DE FOICE


Kleptein



«Cleptocrata», «cleptocracia» - dois termos apreendidos no fim-de-semana e que, qual brinquedos novos em mãos de criança, não param de estimular os neurónios. As palavras ecoam na cabeça e logo se sente, mesmo sem abrir a boca, o seu rolar na língua: cle-pto-crata; cle-pto-cra-cia; clepto... De repente tudo emperra. Cansada do jogo, a massa cinzenta protesta - Cleptocrata? Cleptocracia? Mas que raio de coisa é essa? Vasculha-se a memória e é um branco absoluto, um vazio, um buraco negro, enfim, uma ignorância, o que, convenhamos, é chato. Revêem-se os arquivos e nada. O banco de dados laboriosamente criado ao longo de anos revela-se de uma inutilidade atroz e não se conforma. Reage. Quase se pode ouvir o misterioso mecanismo a investir nos labirínticos meandros em busca de resposta, abrindo pastas e ficheiros, espreitando em recantos improváveis na hipótese de alguma desatenção, sabe-se lá onde é que se pode deixar esquecida uma informação nesta ciclópica tarefa de armazenar dados em plena era da sociedade da comunicação! O resultado é uma frustração absoluta. Nada, nada de nada. É aí que entram em acção os ecos, ruído de fundo a atrapalhar os sons, manobras de diversão para entretar neurónios: clepto...cleo...cleopatra...Elisabeth Taylor... Richard Burton...hihihi...

O personagem cinzento que habita a caixa craniana não tem sentido de humor. Sentado lá no alto das suas profundezas, braços cruzados, perninha a dar a dar - parece-me que estou a vê-lo! -, acha que chega de bagunça e é mais que tempo de pôr mãos à obra. Afinal para que servem os dicionários? E as enciclopédias? E os outros livros todos que te atafulham a casa? Para decorar, é?

São duas da manhã e não há volta a dar-lhe. Quando começa assim é certo e sabido que o «cinzento» não deixa dormir ninguém, pelo que mais vale enfrentar o problema de frente. Atacar o dicionário da Morais, a enciclopédia Luso-Brasileira, dar uma saltada rápida à Internet, qualquer coisa. Acordados os livros, despertado o computador, o mistério continua. O mais que se descobre é «cleptofobia», «cleptomania», «cleptómano»: tudo compostos a partir do grego kleptein - roubar. Há quem tenha pavor de não pagar o que deve; há quem manifeste uma tendência irresistível para o roubo. É uma doença, informam as bíblias do saber, associada a várias perturbações mentais.

Pesquisa feita, já a madrugada vai alta, a perplexidade aumenta. Já não se trata da liberdade criativa de inventar novos termos, mas de saber o que é que isto tudo tem a ver com Mobutu. Afinal o homem é doente? Louco? Foi o «impulso mórbido para o roubo, geralmente de objectos desnecessários», que durante mais de três décadas levou Mobutu a expoliar um povo que vive na miséria, transformando-se num dos indivíduos mais ricos do mundo? É isso?

Coitado. E pensar que há quem lhe chame ditador, e déspota, e sanguinário, e desumano. A um doente! O mundo é cruel.

Só não se percebe porque é que os amigos de Mobutu, que durante quase quarenta anos não se deram conta da maleita, não o internam num qualquer centro psiquiátrico, com uma mão cheia de contas de vidro disfarçadas de diamante para se entreter. Mas os tempos são de mudança. Um destes dias, ainda somos capazes de ver chegar no novo Congo camiões TIR carregados de pedras preciosas e um infindável espólio de riquezas desviadas para o estrangeiro, com um simpático cartão de desculpas das potências ocidentais: «Foi sem querer, não levem a mal. Mobutu, sabem?, é um 'cleptocrata'».


AF