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A mercantilização dos direitos



Grandes placards azul-amarelo espalham pelas ruas a publicidade à privatização da EDP com o capcioso apelo: «De cliente passe a accionista".

À primeira vista, parece apenas uma requentada recuperação do já desacreditado «capitalismo popular». Atentando melhor, descobre-se a tentativa de maquilhar a vergonhosa venda do património público não aos clientes da EDP mas sim à clientela dos grandes tubarões capitalistas que estão a esquartejar entre si a riqueza do país (não esquecer que a EDP é posta em leilão com o justificado rótulo de ser "a maior empresa em volume de lucros"). Mas no slogan da EDP topamos também um reflexo das manipulações de vocabulário em voga para condicionar e enganar as pessoas sobre a realidade das relações sociais.


A mercantilização dos direitos, no quadro da grande operação de retrocesso social em curso, usa e abusa desse jogo com as palavras.

Por exemplo: direitos que já estavam adquiridos e reconhecidos como avanços inalienáveis da sociedade humana, são agora apresentados como «bens de consumo».

Esta nova terminologia não é casual. Faz parte de toda uma prédica do capital para dar pretensa legitimidade às suas leis e seus interesses.

A designação de «direitos sociais» leva as pessoas, muito justamente, a pensar que questões como a educação, a saúde, a segurança social - devem ser inerentes ao próprio desenvolvimento da sociedade. Mas agora vem o capital e diz: não, isso são «bens de consumo», sujeitos portanto às leis do mercado; quem os quiser, tem de estar disposto a pagá-los. Compreensivo, o capital poderá admitir que o Estado assegure uma quantidade módica desses bens (escola primária, "rendimento mínimo") mas quem quiser mais terá de comprá-los, como se compra a roupa, o carro, o champô.


Esta exibição da natureza profunda do capitalismo, agora quando pensa ter-se livrado da sombra do socialismo que durante tantos anos o conteve, reflecte-se também no vocabulário.

Antes, por exemplo, o capital apresentava-se como o motor da produção - hoje fala é de rentabilidade: o capital não existe para produzir, mas sim para se reproduzir.

Antes as empresas gabavam-de «dar trabalho» - hoje proclamam a necessidade de «racionalizar» os encargos com mão d'obra, em nome da competitividade.

Antes falava-se das responsabilidades sociais do Estado - hoje faz-se a satanização do Estado na regulação económica e social (recusando assim aos cidadãos o direito de, através do Estado,

intervirem nessa regulação) e exige-se a entrega directa ao capital da suprema gestão da sociedade, com a privatização de todos os seus recursos e actividades: empresas nacionais e sectores públicos, telefones, correios e auto-estradas, electricidade, água, caminhos de ferro e, também, saúde, educação, segurança social.


Na mira do capital surge cada vez mais como alvo a «privatização» do ser humano: indiferente aos valores da solidariedade, da amizade, do amor, cada vez mais condicionado para se isolar, para não ser solidário, não participar em causas colectivas, não acreditar na possibilidade de mudar a sociedade e a vida.

Mas privatizar o ser humano nunca será possível: o homem é por natureza um ser social, que só socialmente realiza a sua humanidade. Por isso mesmo haverá sempre quem não aceite que seja posto à venda o direito humano de transformar o mundo.


Aurélio Santos