EM FOCO

«É necessário restaurar
a medida humana da economia»


Entrevista com Ken Coates
conduzida por Daniel do Rosário



Ken Coates é deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido trabalhista britânico desde 1989. Com a luta contra o desemprego como cruzada lançou no ano passado o "Apelo pelo Pleno Emprego" que culminou na realização no Parlamento Europeu da primeira "Convenção pelo Pleno Emprego", onde participaram mais de 700 representantes de partidos, sindicatos, igrejas e organizações não governamentais.

Considera que a marcha forçada em direcção à moeda única está a ter consequências sociais catastróficas e que o necessário é "humanizar" a economia e que se invista na criação de emprego e na segurança social. Deve-se apostar na redução do tempo de trabalho sem reduzir os salários e levar a cabo uma redistribuição da riqueza mais justa.
Talvez por isso não seja de estranhar que não esconda a sua atitude "não muito amigável" em relação ao New Labour de Blair. Recentemente esteve em Lisboa no Comício Internacional promovido pelo PCP, apesar das pressões que sofreu para não o fazer
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— Quais são as causas do nível de desemprego que se regista hoje que, só na União Europeia, atinge 20 milhões de pessoas?

Os grandes factos são provocados por grandes causas. Recorde-se que, durante 30 anos após a II Guerra Mundial, nós tivemos pleno emprego. O que aconteceu foi que os governos nacionais aplicaram o conhecimento que lhes fora legado por Keynes e os seus seguidores e geriram as economias nacionais por forma a estimular a procura quando esta estava a cair e reduzi-la quando aumentava demasiado depressa, por forma a manter um nível de emprego constante. E quando dizemos que tínhamos pleno emprego, claro que havia algumas pessoas que não estavam a trabalhar, mas que se estavam a movimentar entre empregos. Em alguns países o seu número deveria rondar os 3 por cento da população activa. Agora, já perdemos esses números de vista. Agora falamos de desemprego em alguns países superior a 20%, como em Espanha, ou de 17%, como na Finlândia. Não vou entrar pelos números, mas o que é verdade é que há muito que ultrapassámos as fronteiras da civilização.


— E o que é que levou a essa situação?

Essencialmente porque a economia se transnacionalizou. Os governos já não se atrevem a praticar determinados tipos de políticas que sejam prejudiciais para os interesses das corporações multinacionais e dos sistemas financeiros. O poder deslocou-se e este movimento aumentou enormemente com o estabelecimento da liberdade de circulação de capitais, com o facto de que se podem deslocar recursos ao redor do mundo tocando numa tecla de computador. Mas como condição para isto tivemos o desenvolvimento da "moda" entre economistas, assim como entre governos, de uma débil noção chamada "NAIRE", que significa "Taxa de Desemprego Não Aceleradora da Inflação", cujo sentido está bem patente no seu nome. O que diz é que tem que haver um número suficiente de desempregados para garantir que a inflação não aumenta. Isto é uma doutrina fraca. Significa que as pessoas podem perder os seus empregos para que eles possam controlar a taxa de inflação. Porque é que alguns, esses desempregados, devem ser responsáveis para que o mundo possa ser feliz? Realmente não é uma suposição nada razoável. E esta doutrina faz hoje lei na maioria das chancelarias mundiais.

O facto é que é necessária uma economia baseada nas suas pessoas. E se todas elas têm condições para trabalhar e para produzir efectivamente e para ganhar um ordenado decente, então a economia é forte. E se 10, 15 ou 20 por cento delas estão excluídas da economia, é uma economia ineficaz. Devemos restaurar a medida humana destas coisas. São as pessoas que devem vir em primeiro lugar quando se fazem estes cálculos.


— Restringindo-nos à situação que se vive no espaço da União Europeia, que relação considera haver entre as orientações económicas de fundo assumidas e a taxa de desemprego?

Logo à partida, elas reforçam-se uma à outra. Eles são absolutamente sinceros: fizeram um acordo em Maastricht para se avançar em direcção à União Económica e Monetária (UEM). A UEM, em abstracto, é uma coisa adequada, pois as nações, separadamente, perderam o controle da sua moeda. É uma competição de cada um contra todos. Ao serem tomadas as opções económicas modernas a moeda sobreavalia-se então torna-se necessário desvalorizá-la. Então todos os demais entram em caos e têm que desvalorizar a sua moeda. Foi o que aconteceu há 3 anos, em 1992, quando o governo britânico saltou do Mecanismo das Taxas de Câmbio (MTC) e desvalorizou a libra. Isto foi óptimo para a indústria britânica durante um curto período de tempo, extremamente mau para os demais durante muito tempo. Há uma espécie de ciclo no qual cada país mina os demais. Para trabalhar juntos é sensato ter uma moeda única que mataria a especulação tipo George Soros, o multibilionário. Numa ocasião contei que Soros fez um bilião de libras, com a operação que destruiu o lugar da libra no MTC. A moeda única pararia isso, mas não se avança para uma moeda única provocando miséria por toda a parte, restringindo as despesas públicas quando elas deviam ser expandidas. Se há um desemprego crescente, é necessário gastar mais por forma a fazê-lo diminuir. E a proposta de Maastricht é de cortar o défice em todos os países por forma a que todos eles estejam em condições de aceder à União Monetária. O que isso provocou foi o aumento do desemprego em todos os países. No meu relatório ao Parlamento Europeu avanço com a estimativa de que Maastricht gerará mais 10 a 12 milhões de desempregados e realmente estamos a caminho disso.

Mas se os povos insistirem, as políticas terão que ser criadoras de emprego. Os mecanismos para gerar empregos estão lá. Podíamos criá-los da forma como se discutiu na Convenção pelo Pleno Emprego, financiando projectos promovidos pelas autoridades locais e regionais que criassem empregos e melhorassem o ambiente e as infraestruturas. Projectos que podem ser desencadeados pelas autoridades locais mas que estas não fazem devido à falta de dinheiro, em parte devido à política de cortes. Disponibilizando recursos e encorajando a descentralização através da realização de acções locais, dinamizadas pelas autoridades locais, para criar empregos. Por outro lado, pode-se partilhar o emprego, pois hoje uma pequena parte da população trabalha com máquinas extremamente avançadas durante 50, 60 e por vezes mais horas por semana.


— A redução do tempo de trabalho seria uma solução?

Uma grande solução. Brevemente entraremos nessa "Nova Era" de que se fala, e por este andar metade das pessoas não trabalhará e a outra metade trabalha todas as horas que há. Houve algo que se desenvolveu de uma forma completamente errada. E isto porque não utilizamos a medida humana para avaliar a vida económica. Se o fizermos vemos que as pessoas querem trabalho, querem o trabalho suficiente para poderem viver decentemente, mas depois querem poder viver. E isto que temos agora não é forma de se gerir uma sociedade, com as pessoas compelidas a fazer horas extraordinárias, a trabalhar imensas horas.


— Acha que a redução do tempo de trabalho deveria ser acompanhada de uma redução de salários?

Não. Isso seria exactamente o oposto do que necessitamos. O nosso problema é deveras paradoxal: inventamos máquinas cada vez mais sofisticadas, aumentamos a produtividade do trabalho. Não há muito tempo assumia-se que as invenções técnicas aumentariam a produtividade em 2-3% ao ano, mas agora temos novos sistemas de gestão, bem como novas máquinas, que de facto aumentam a produtividade, mas em 200-300% ao ano! O que é um enorme aumento da riqueza. E ninguém sabe como a distribuir. Na verdade, as companhias transnacionais sabem como o fazer, entregam-na aos seus directores e utilizam-na para incrementar o seu poder económico. Num determinado momento tivemos uma verdadeira confusão na qual os governos diziam que estavam falidos, não podiam aumentar os impostos com medo de perder investimentos. Por isso, diziam, não podiam sustentar escolas, não podiam alimentar os idosos, tinham que cortar todas as despesas com a segurança social, etc. Tudo isto significa que há um aumento da taxa de desemprego que, por sua vez, aumenta o custo da manutenção dessas pessoas. É um círculo vicioso. Esta sociedade é três vezes mais rica do que era quando o "estado de bem-estar" se estava a inventar a ele próprio. Uma das formas de redistribuir estes recursos é cortar nas horas de trabalho sem reduzir o pagamento. Parte do nosso problema é não haver procura suficiente. Como vemos hoje o caso da Renault de Vilvoorde. Vão fechar a fábrica mais eficaz que têm. E porquê? Porque dizem que estão a produzir carros a mais. Eu penso que isso pode ser verdade, mas não pelas razões que eles dizem. A principal razão porque eles pensam que estão a produzir demasiados automóveis é por as pessoas não terem dinheiro suficiente para comprar os carros que produziram. Por isso é necessário que haja mais procura.

O problema básico é não haver procura suficiente para manter toda a gente empregada. E isso tem que ser resolvido redistribuindo a riqueza, o que pode ser feito entre as classes sociais, mas também se pode redistribui-la entre países e regiões ricas e pobres, ou entre sectores da economia para que os que se encontrem em declínio sejam equilibrados por novas indústrias. Tudo isto implica que a distribuição da riqueza seja determinada por referência às necessidades públicas.


— Tendo em conta os problemas e as causas que referiu como estando na origem de tão elevada taxa de desemprego, que ao fim ao cabo são os mecanismos do próprio sistema capitalista, acha suficiente que uma Convenção como a pelo Pleno Emprego se fique pela exigência da inclusão no novo Tratado da União Europeia de um Capítulo sobre o Emprego "compreensivo"?

Não é suficiente, de maneira nenhuma. É uma desgraça que se faça um Tratado sem nenhuma referência ao desemprego. Havia uma pequena referência em Maastricht, e que mesmo assim não foi suficientemente utilizada, mas na realidade Maastricht é um recuo em relação ao Tratado de Roma, que preconizava o pleno emprego. Além disso temos o pleno emprego referenciado em muitos tratados, na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, por exemplo, temos o direito ao trabalho. Mas o problema com todos estes tratados é que não há nenhum sítio onde um desempregado se possa dirigir para se queixar a um polícia de que não tem emprego. Se se vai fazer um Tratado ele tem de providenciar um remédio para uma maleita e para esta maleita não há remédio. Na verdade eu prefiro colocar o problema ao contrário e dizer que para fazer um Tratado para desenvolver uma sociedade mais europeia, isso tem de incluir mecanismos para criar empregos e para se certificar de que os empregos têm prioridade sobre outras questões na sociedade. Do meu ponto de vista alterar o Tratado é um objectivo muito modesto e que deveria ser muito fácil, mas que provou ser bastante difícil. O que é necessário é agir. E o objectivo de uma Convenção como esta é encorajar as pessoas. Se elas comunicarem, se partilharem experiências podem começar a desenvolver soluções e tudo isto é um fundamento para a acção. A Convenção é realmente uma tentativa de começar a fazer tudo isto mover-se para que se consiga criar uma cooperação europeia a partir de baixo, uma Europa alternativa, que seja, acima de tudo, uma Europa do emprego.


— Está satisfeito com os resultados da Convenção?

Estou satisfeito por termos começado, mas é o primeiro passo de uma longa marcha. Temos as pessoas que podem começar a mudança, mas elas necessitam de conversar com todos os seus camaradas de todas organizações que participaram na iniciativa. Estiveram mais de 30 partidos políticos representados, essencialmente de esquerda, claro, há um enorme fundo de boa vontade. A questão é saber se isto é o princípio de uma mobilização, o que significará que o tema está agendado. A Europa está a atravessar um conjunto de eleições em diferentes países e todas elas deveriam ser eleições sobre o emprego. Todas. E depois as posições dos partidos melhorarão, pois quanto mais as pessoas estão activas, mais podemos progredir. Sabemos qual é o problema do desemprego: se a questão não se coloca, as pessoas ficam tão desmoralizadas e tão indefesas que os partidos pioram em vez de melhorar, eles próprios perdem a esperança e não sabem o que oferecer às pessoas. Culpam-se uns aos outros na sua indulgência em lugar de desenvolverem políticas sensíveis. Mas se as pessoas forem activas e os desempregados não estiverem esmagados, se se organizarem e estiverem confiantes, então pode-se esperar que os partidos melhorem. Há muito espaço para melhorar.


— O que pensa dos resultados das recentes eleições na Grã-Bretanha?

Duas coisas e que são contraditórias. Em primeiro lugar foi uma vitória tremenda. As pessoas estão efusivas. Ainda no outro dia encontrei uma professora primária a caminho de comprar um grande molho de rosas vermelhas porque ia ter um jantar comemorativo para celebrar a vitória. Pessoas que normalmente não estariam à esquerda regozijaram com a queda daquele governo horroroso. Naturalmente é muito bom porque significa que a pressão popular afinal se pode exprimir. Mas a verdade é que, além disto, surgem também verdadeiros problemas. é provável que a política de segurança social do novo governo seja muito retrógrada. Eles não vão reformar a segurança social, o que significa que querem gastar menos dinheiro com ela e desejam forçar os jovens a deixar as bichas do desemprego empurrando-os para uma variedade de esquemas compulsivos. Se esses esquemas envolvessem empregos decentes ninguém se queixaria, mas para criar empregos decentes é preciso fazer o que estávamos a dizer há pouco, é preciso investir dinheiro e esforços, aplicar recursos. Recursos esses que, neste caso, são muito pequenos. No entanto, isso não é tudo. Esta experiência será recomendada à Europa, como sendo a política que a Europa deve seguir. E o mesmo se aplica à reforma do sistema de pensões. O ministro responsável por esta reforma copiou o seu modelo do Chile de Pinochet. O Chile de Pinochet introduziu um sistema de pensões no qual talvez metade das pessoas tinha reformas relativamente boas, mas a outra metade não tinha absolutamente nada. Por isso este é um sério problema para a Europa, pois todos os países estão a tentar reformar os seus sistemas de pensões para os tornar menos custosos.

Considero infame a ideia de que não podemos sustentar os idosos. Não encontro nenhuma justificação para isso. Mas a tentativa de economizar está claramente no topo da agenda do novo governo britânico. E o que eu realmente temo é que isto seja a base para um assalto na Europa. Blair disse que não vai introduzir o sistema social europeu na Grã-Bretanha, mas que vai exportar o modelo britânico de competição para a Europa. E ele encontrará muitas pessoas, algumas das quais se dizem da esquerda, e muitas mais ainda que não estão nada à esquerda, dispostas a seguir esta estrada.


— Mais que votar pelos trabalhistas as pessoas quiseram votar contra os conservadores?

Sim, muito. Houve um sentimento público crescente de que os conservadores haviam criado um modo de vida na Grã-Bretanha totalmente inaceitável. É por isso que o resultado é tão estranho, pois por forma a votar contra as ideias e as políticas do thatcherismo elegeram um governo que será provavelmente esquizofrénico. Pelo menos parte deste governo quer prosseguir a "experiência Thatcher" e a outra opor-se-á a tal desenvolvimento. Eu não sei como se desenrolará a disputa, mas podemos esperar para ver.


— "New Labour" ou apenas "Labour"?

A minha atitude em relação ao "New Labour" nunca foi muito amigável. Não tenho objecções a que as coisas sejam "novas", mas neste caso não vejo nada que seja proveitoso para o nosso povo. A novidade está toda em ganhar as eleições. Blair foi triunfalmente bem sucedido. É necessário reconhecê-lo. É uma vitória espantosa. Mas em minha opinião essa vitória teria acontecido sob a liderança anterior. O falecido líder do Partido, John Smith, era um típico dirigente do partido trabalhista, não revolucionário é certo, mas empenhado em ajudar os desempregados, em criar emprego, tratar dos pobres e dos pensionistas e, em minha opinião, teria obtido uma vitória tão grande como a de Blair.