EM FOCO

Aborto

Escrever a frio...
quanto baste


Por
Luísa Araújo



1982, 1984, 1994 e 1997 -
quatro oportunidades para a resolução de um problema. Momentos com diferenças significativas, quer nas consequências no plano legal, quer no impacto público, sendo adquirido que, depois de cada um, nada ficou como antes. Segundo a nossa concepção sobre as questões de fundo para a resolução do flagelo do aborto clandestino, os passos dados não foram determinantes, mas foram importantes para alcançar o objectivo.


Desde o início desta batalha, as propostas do PCP assentam no reconhecimento da realidade, nos esclarecimentos técnico-científicos e na necessidade de a I.V.G., a pedido da mulher e designadamente com fundamento em razões de ordem social e económica, fazer-se legalmente, com acompanhamento e segurança médica.

Não tem havido vontade política de resolver este grave problema social e de saúde pública. Tem sido imposta aos portugueses, particularmente às portuguesas, uma lei penal que serve "para tutela de normas morais ou de uma qualquer moral".

Como ponto de partida para esta análise opta-se por recordar que, em 1982 e 1984, aquando da apresentação dos Projectos-Lei do PCP, o regime de incriminação do aborto no Código Penal aprovado em 1982 não incluía os casos do aborto terapêutico (por razão de saúde da mulher) e do aborto eugénico (por mal formação do feto), mantendo os contornos do regime punitivo que vigorou em Portugal desde 1886, já este praticamente sem alteração relativamente ao Código Penal de 1852. Foi assumido pelo Governo da altura - AD - manter a lei tal como estava e não considerar nem a despenalização do aborto terapêutico, incluída no Projecto de novo Código Penal. Poder-se-à dizer que as primeiras iniciativas legislativas do PCP nesta matéria eram para alterar uma lei de 130 anos e uma realidade de séculos.


Evolução positiva
lenta e insuficiente

Quando o PCP, em 1982, apresentou o Projecto-Lei sobre IVG, ele não foi de imediato aceite pela Mesa da Assembleia da República porque o Regimento da Assembleia impede a admissão de projectos-lei inconstitucionais e o Artigo 25º da Constituição diz que "a vida humana é inviolável". Feita a análise considerada necessária, o Projecto-Lei do PCP foi admitido e foi discutido pelos deputados da Assembleia da República. Na votação contou com 105 votos a favor e 127 contra.

Nesta altura ainda não foi possível alterar a legislação, mas veio a lume o debate, deixou de ser tabu falar, discutir e propor medidas contra o aborto clandestino. A Comunicação Social, particularmente a escrita, dedicou-lhe grandes espaços, alguns tratados com seriedade e contributos para o esclarecimento. Um jornal diário da altura escrevia: "... o aborto continuará a ser crime em Portugal. Mas ninguém ficou com dúvidas: o assunto voltará ao Parlamento".

Em 1984, de novo a Assembleia da República discute legalização do Aborto. Dois Projectos-Lei, o do PCP e o do PS, este limitado nas propostas. O debate e a votação dão origem à lei 6/84 - deixa de ser punível o aborto ético (por violação), o aborto terapêutico e o aborto eugénico; contudo deixa de fora o aborto por razões económicas e sociais. O flagelo do aborto clandestino continuará a fazer parte da vida de milhares de mulheres portuguesas.

Em 1994, aquando da Revisão do Código Penal, o PCP propôs a exclusão da ilicitude da I.V.G. nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher e, porque já na altura estava cientificamente provado que o período das 16 semanas era insuficiente para detectar muitas malformações do feto, propôs o alargamento para as 22 semanas para o aborto eugénico. Aliás, esta era também a proposta da Comissão de Revisão do Código Penal. O Ministro da Justiça, sobre esta última proposta, disse não aceitar por não haver "suficiente conhecimento científico para poder pronunciar-se àcerca do prazo de 22 semanas" e aventava "a possibilidade de um referendo nacional sobre a matéria". No final do debate afirmou: "A posição do Governo é muito clara: face a este Código não altera, sequer, uma palavra" (não foi bem assim, mas seria para outro artigo).

Fevereiro de 1997, de novo a discussão na Assembleia da República. Resulta a aprovação na generalidade do Projecto-Lei que alarga o prazo legal do aborto eugénico de 16 para 24 semanas.

São rejeitados os Projectos-Lei do PCP e do PS, de cujas propostas se destaca a legalização da IVG a pedido da mulher até às primeiras 12 semanas. A iniciativa do PCP contou com 99 votos, o maior apoio Parlamentar de sempre. A do PS não foi aprovada por um voto.


Debate possível entre alguns
e inadmissível entre outros

Ao longo destes anos tem-se evoluído nos conhecimentos e no diálogo entre políticos e especialistas de áreas da Saúde e do Direito Penal. Para os passos dados foi indispensável esta prática. Entretanto, alguém interrogou com muita oportunidade: "Como poderá ser posto em prática um debate deste tema entre um budista e um muçulmano ou entre um católico e um ateu, se a premissa for constituída pela discussão em termos das respectivas perspectivas morais, teológicas e de filosofia de vida?"

Ao longo destes anos não houve alteração no conteúdo essencial do debate na Assembleia da República. As opiniões e as posições dos deputados fundamentam-se em bases absolutamente opostas e inconciliáveis. De um lado, os que não tendo dúvidas sobre a defesa da vida, sobre o aborto como último recurso, reconhecem a realidade do aborto clandestino em Portugal, interpretam as causas deste flagelo e querem alterar a situação considerando que para isso, além de outras medidas, é necessário uma lei que legalize a IVG, contemplando nela as razões económicas e sociais. Do outro lado estão os que se arvoram em únicos e absolutos defensores da vida, guardiões da ética e dos valores morais e religiosos, que não deixam de salpicar alguns dos seus discursos com termos como "a chaga social do aborto", lamentar "o número elevado de abortos praticados no nosso país", reconhecer que "há mulheres que se vêem muitas vezes a praticar o aborto em condições imorais e indignas" e outras "vão acabar no Hospital o aborto que começaram em casa".


Contradições
que a discussão sublinha e explora

O CDS/PP, ao longo destes anos, argumenta que o problema do aborto só pode ser combatido com o Planeamento Familiar. No debate em 1982 foi questão pouco abordada nas suas intervenções e votou contra os dois Projectos-Lei em discussão (um do PCP e outro do PSD). Em 1984 absteve-se na votação do Projecto-Lei sobre o mesmo problema apresentado pelo PS e PSD e votou contra o Projecto-Lei do PCP. Na discussão mais recente coloca a interrogação - se se tem noção do que significaria para os hospitais se todas as mulheres que decidem abortar a eles recorressem? Então a posição do CDS/PP contra o aborto é por razões morais e "defesa da vida" ou é porque os hospitais não têm condições?

O PSD, em 1982, votou contra o Projecto-Lei do PCP, admitiu numa das suas intervenções que se tratava de um problema para "sede de Código Penal" e na declaração de voto referiu "não tem da sociedade e dos fenómenos sociais uma concepção imobilista". Em 1984 voltou a assumir uma posição de condenação dos Projectos-Lei em discussão, considerou que "ainda não existem motivos para alterar a posição". Esteve contra a Lei 6/84. Em 1997 torna a votar contra os Projectos-Lei e argumenta que "a lei actual é equilibrada e a sua filosofia correcta" e defende o Referendo.

O PS, não tendo alterado o conteúdo essencial da sua posição sobre a matéria, teve alterações significativas nas propostas concretas. Em 1982 votou favoravelmente o Projecto-Lei do PCP que incluía as razões económicas e sociais para a legalização do aborto. Em 1984 apresentou o seu próprio Projecto que não incluía aquelas razões o que justificou com a preocupação "em respeitar os direitos e as posições daqueles que, por imperativos conceptuais ou de fé religiosa, sejam adversos a toda e qualquer IVG". Em 1997 justifica o seu novo Projecto-Lei: avaliando a experiência de 13 anos da vigência da Lei 6/84, faz "uma apreciação negativa", e adianta que "ela deixou patende a sua insuficiência para resolver problemas sociais graves de saúde pública".


Mais cedo que tarde

O PCP partiu para a batalha contra o aborto clandestino com a consciência de que seria uma luta difícil e talvez demorada.

Nos vários momentos, tem sido o PCP a desencadear o debate público e o processo parlamentar em torno da Interrupção Voluntária da Gravidez.

As alterações verificadas na legislação portuguesa são insuficientes para a realidade nacional e estão aquém, relativamente aos nos países da Comunidade Europeia. Quando se iniciou a discussão na Assembleia da República colocava-se que, entre os países da Comunidade Europeia, só Portugal, Bélgica e Irlanda não tinham a legalização da IVG a pedido da mulher até às primeiras 12 semanas. Entretanto, aquando da discussão este ano, só se referia Portugal e Irlanda, porque a Bélgica, em 1990, após 20 anos de discussões no Parlamento belga, aprovou a lei do aborto.

O debate de 1997 iniciou com a interrogação colocada pela nossa camarada Odete Santos: "Porque razão a Assembleia da República debate, pela terceira vez, o aborto clandestino?" E mais à frente, disse: "Ninguém pode fechar os olhos e dormir sobre uma lei que só aparentemente lhe proporciona o apaziguamento da consciência."

Depois deste debate, a Comissão Política afirmou que o PCP prosseguirá o combate nesta matéria e, mais cedo que tarde, confrontará de novo as instituições democráticas para se adoptarem medidas legislativas que ponham fim ao aborto clandestino.