EM FOCO

Sociedades desportivas
ou empresários à força?


Por
António Filipe


A coberto de um discurso feito de banalidades sobre a óbvia necessidade de moralizar o futebol profissional, o mesmo Governo que havia aprovado o "totonegócio", aprovou mais recentemente um diploma sobre as sociedades desportivas que, como ficou demonstrado com o caso da Madeira, é completamente destituído do mais elementar bom senso.


1. O caso rocambolesco ocorrido na Madeira a propósito da Sociedade Anónima Desportiva que Alberto João Jardim pretendeu constituir, é o exemplo mais perfeito e acabado do tipo de situações a que pode conduzir a aplicação do regime jurídico que o Governo aprovou para as sociedades desportivas. Aplicando este diploma governamental de acordo com as suas conveniências, o Presidente do Governo Regional decidiu pegar nos três clubes de futebol profissional existentes na região e obrigá-los a integrar uma sociedade desportiva, tendo o seu Governo como sócio maioritário. Alberto João Jardim designaria então o Presidente da Sociedade e os demais gestores de entre os seus correligionários políticos, escolheria o treinador e demiti-lo-ía quando fosse caso disso, homologaria provavelmente as contratações de jogadores e decerto daria ordens para o campo a partir da tribuna VIP. Este exemplo, embora possa ser um caso extremo, não deixa de ser exemplo real, elucidativo do género de situações de promiscuidade entre a política e o desporto profissional que podem institucionalizar-se por todo o país, envolvendo Câmaras Municipais ou associações de municípios, se este diploma das sociedades desportivas não fôr profundamente alterado. Mas o caso da Madeira teve pelo menos uma virtualidade, que foi a de chamar a atenção da opinião pública para o real conteúdo deste diploma e de fazer com que muita gente que, sem conhecer o decreto-lei, apoiou entusiasticamente a ideia das sociedades desportivas, caísse em si, e reflectisse seriamente sobre a gravidade do regime consagrado pelo Governo.


2. Ninguém ignora a relevância económica que assume hoje em dia o fenómeno desportivo e a necessidade inquestionável da sua moralização. De igual modo, ninguém põe em causa a indispensabilidade de regulação legal do desporto profissional em moldes adequados, nem se contesta que a prática dessa actividade possa passar pela constituição de sociedades desportivas. Nada disto constitui novidade, dado inclusivamente que desde Junho de 1995 existe um diploma legal regulador das sociedades desportivas, sem que, no entanto, essa possibilidade legal tenha sido utilizada por algum clube desportivo.

No preâmbulo do decreto-lei publicado em Abril deste ano, opinou o Governo que a falta de adesão à fórmula das sociedades desportivas se deveu a uma regulação inadequada, "na medida em que, desde logo, interditava a distribuição de lucros, retirando assim um dos principais atractivos para a sua constituição". É verdade que o novo decreto-lei permite distribuir lucros, mas o grande problema é que está muito longe de ser a sua principal inovação.

O que o Governo pretende de facto com este decreto-lei é viabilizar a existência de sociedades desportivas estatizando o desporto profissional, através do recursos próprios dos municípios e das regiões autónomas e adoptando um regime de constituição forçada de sociedades desportivas, através do estabelecimento de privilégios injustificados para as sociedades desportivas a par de verdadeiras e injustas sanções para os clubes que não adoptem esse modelo.

Para além disso, o decreto-lei das sociedades desportivas consagra um regime legal repleto de aspectos absurdos, cuja análise não se revela possível neste espaço, mas de entre os quais avulta a regra, impensável, da irreversibilidade da constituição de qualquer sociedade desportiva.


"Serviços municipalizados de futebol"

3. A previsão da participação dos municípios e das regiões autónomas no capital social das sociedades desportivas, principal inovação do diploma governamental, é algo de verdadeiramente inaceitável. O que o Governo pretende afinal, é colmatar a falta de interesse dos clubes na constituição de sociedades desportivas, assegurando a sua viabilização à custa dos recursos regionais e municipais, o que equivale a dizer, à custa do dinheiro dos contribuintes.

Pior ainda: Enquanto os clubes que originam a sociedade desportiva não podem deter mais do que 40% do respectivo capital, a câmara municipal ou a região autónoma pode deter até 50% e ser, em qualquer caso, o sócio maioritário. O que o Governo pretende por esta via é a transformação dos clubes em verdadeiros serviços municipalizados de futebol profissional.

É uma evidência que as Câmaras Municipais têm o dever de apoiar e incentivar a prática desportiva pelos seus munícipes, de promover a iniciativa do domínio do desporto, de apoiar os clubes na prossecução desses objectivos, desde que de forma transparente e respeitadora do princípio da igualdade, e têm responsabilidades evidentes na garantia do direito de todos à prática desportiva. Só que o que este diploma consagra é precisamente o contrário. O Governo PS, através de um Secretário de Estado dos Desportos que não tem sido mais do que um inepto Secretário de Estado do futebol profissional, pretende sacrificar o desporto para todos no altar do desporto profissional, e propiciar situações em que sejam abandonadas pelos municípios ou pelas regiões autónomas funções essenciais para a resolução dos problemas das populações, para que alguns Presidentes de Câmara ou de Governos Regionais possam fazer campanhas eleitorais tendo como bandeiras as subidas de divisão ou a presença das suas sociedades desportivas nas competições europeias. Para além da total discricionariedade quanto à intervenção municipal em matéria desportiva (pode perguntar-se porque razão investirá uma Câmara no clube A e não investirá no clube B, ou C), este diploma institucionaliza a promiscuidade mais lamentável entre a política e o desporto profissional.

O caso da Madeira é um exemplo conhecido de um investimento público inadmissível no desporto profissional e de confusão entre os interesses e os cargos governativos, partidários e clubisticos. Mas seria errado pensar que esta promiscuidade entre a política e o desporto profissional é uma especificidade madeirense e que não existem outras situações bem lamentáveis, em muitos municípios de maioria PS, PSD, ou PP, por esse país fora. Só que o Governo, em vez de condenar e combater tais situações, tratou de as institucionalizar, dando-lhes cobertura e incentivo legal.


Regime especial de gestão

4. Uma segunda questão essencial deste diploma, destina-se a coagir os dirigentes dos clubes desportivos à constituição de sociedades desportivas e consiste basicamente no seguinte: Os dirigentes dos clubes que não integrem uma sociedade desportiva ficarão sujeitos a um "regime especial de gestão" das respectivas secções profissionais nos termos do qual passarão a ser responsáveis de forma pessoal, ilimitada e solidária, pelas quantias que os clubes deixarem de entregar para pagamentos ao fisco ou à segurança social. Que os clubes devem pagar tudo o que devem ao fisco e à segurança social é algo que nem merece discussão. Aliás, só o Governo PS não entendeu assim quando engendrou o famigerado totonegócio. O que já não é admissível a título nenhum - e tem suscitado até as maiores dúvidas de constitucionalidade - é que enquanto um dirigente de uma sociedade desportiva não assume nenhuma responsabilidade pessoal por dívidas ao fisco ou à segurança social, um dirigente de um clube tenha de responder com o seu património pessoal por dívidas idênticas. Esta dualidade de regimes não tem outro objectivo que não seja o de coagir os clubes a optar por um modelo de sociedade desportiva que de outra forma poderiam recusar. Trata-se de uma ingerência legislativa inqualificável em matéria de liberdade de associação.


5. Mas a chantagem destinada a viabilizar à força as sociedades desportivas não fica, infelizmente, por aqui. Basta verificar, por exemplo, que os donativos das sociedades desportivas aos clubes de origem são integralmente dedutíveis no IRC, o que cria evidentemente um regime desfavorável quer para os outros clubes, quer para as outras empresas; que as sociedades desportivas têm um regime privilegiado na concessão de bingos, o que significa que as câmaras municipais que sejam accionistas de sociedades desportivas têm a possibilidade de se beneficiar a si próprias; que só os clubes que pratiquem desporto em moldes profissionais é que podem constituir sociedades desportivas, mas as sociedades desportivas constituídas podem entrar em competições não profissionais; ou ainda que, ao contrário do que acontece em outros países, não são proibidas participações múltiplas em sociedades desportivas, podendo a mesma entidade ter interesses em diversas sociedades a participar na mesma competição, com as consequências que facilmente se imaginam em matéria de verdade desportiva e de fabricação de resultados.

Acresce ainda, que o diploma governamental consagra a irreversibilidade da opção pelo modelo de sociedade desportiva. Isto é: Se o tricampeão F.C.Porto constituir uma sociedade desportiva e mais tarde considerar que esse modelo não lhe serve e pretender abandoná-lo, das duas uma: Ou deixa de praticar futebol ou se dedica ao futebol amador, não podendo passar da 2ª divisão B. Passa pela cabeça de alguém de bom senso que clubes como o Benfica, o Sporting ou o F.C.Porto possam ser impedidos de praticar futebol profissional, por força de um disparate governamental?


6. A escassas semanas do início da próxima época futebolística, em que o decreto-lei deveria, supostamente, entrar plenamente em vigor, o que o Governo conseguiu foi instalar a confusão no sistema, com a generalidade dos clubes, através das suas estruturas representativas, a solicitarem a suspensão da vigência do diploma, ameaçando inclusivamente - perante o autismo governativo - com a suspensão do início dos campeonatos nacionais.


7. No próximo dia 4 de Julho, a Assembleia da República, por iniciativa do PCP, terá a possibilidade, em sede de Ratificação, de alterar o decreto-lei das sociedades desportivas. Trata-se de uma oportunidade que não deve ser desperdiçada para regular esta matéria em termos sensatos, alterando profundamente o regime imposto pelo Governo PS, que configura uma inaceitável estatização do desporto profissional e que visa dar cobertura legal a interesses e a projectos que correspondem a formas deploráveis de exploração do fenómeno desportivo.