República das bananas?
A questão que hoje convoca o
comentário é a seguinte:
É legítimo, do ponto de vista político democrático e do funcionamento constitucional das instituições, que o Governo recorra à publicação de um decreto-lei para tentar alterar orientações políticas que a Assembleia da República acabou de aprovar sob a forma de Lei? E que utilize esse procedimento exactamente para fazer passar políticas que, expressamente, não tiveram o apoio da maioria dos deputados, inclusive do partido que suporta o actual executivo ?
É o que se está a passar com o
decreto-lei nº 141/97 que o Governo fez publicar no Diário da
República na semana passada. Através do qual o Ministério da
Educação, a pretexto da regulamentação, na prática o que
pretende é alterar aspectos fundamentais da importante Lei
Quadro da Educação Pré-Escolar recentemente aprovada pela
Assembleia da República (lei nº 5/97 de 10 de Fevereiro).
Um exemplo, apenas.
Na Lei Quadro aprovada pela Assembleia (e que foi votada favoravelmente pelo PCP) estabelece-se no seu Artigo 5º o "papel estratégico do Estado" com a explicitação de que "incumbe ao Estado: a) criar uma rede pública de educação pré-escolar generalizando a oferta dos respectivos serviços de acordo com as necessidades; b) apoiar a criação de estabelecimentos de educação pré-escolar por outras entidades da sociedade civil, na medida em que a oferta disponível seja insuficiente; c) definir as normas gerais da educação pré-escolar, nomeadamente nos seus aspectos organizativo, pedagógico e técnico, e assegurar o seu efectivo cumprimento e aplicação, designadamente através do acompanhamento, da avaliação e da fiscalização".
Ora no decreto-lei que o Governo fez agora publicar não só é omitida esta clara e nítida orientação política no que respeita às incumbências do Estado, ao papel fundamental da rede pública de educação pré-escolar e ao carácter supletivo do apoio às iniciativas de outras entidades, como é enunciada uma política de sentido oposto. Nomeadamente com a definição aparentemente inócua de que "as redes de educação pré-escolar, pública e privada, constituem uma rede nacional" (artigo 3º) e de que "os Ministérios da Educação e da Solidariedade e Segurança Social promovem e apoiam a expansão e o desenvolvimento (dessa) rede nacional".
É neste contexto que o próprio princípio da gratuitidade da componente educativa da educação pré-escolar que a Assembleia da República aprovara no Artigo 16º da Lei Quadro (com os votos contra do PS...), passa a ter uma aplicação política muito diversa. É que é obviamente diferente promover a gratuitidade num sistema de educação pré-escolar assente na rede pública (de iniciativa central ou das autarquias locais) ou, como de facto pretende o prof. Marçal Grilo, utilizá-lo fundamentalmente para financiar e promover ainda mais a rede privada, que na actualidade já é largamente dominante no sector do pré-escolar, como se sabe.
Não está assim colocado às
instituições democráticas e em particular à Assembleia da
República, bem como às organizações políticas e sociais e
aos cidadãos, o desafio de fazer valer o ordenamento do regime
democrático e do Estado de direito consagrado na Constituição,
contra os lobbies instalados, por mais influências
públicas e secretas que estes mostrem capacidade de mobilizar?
Ou aceita-se a transformação de Portugal, como parece que alguns pretendem, numa espécie de república das bananas ?
Edgar Correia