EM FOCO



A luta continua

por Domingos Abrantes


A CIMEIRA de Amsterdão, apesar das "tensões", das divergências ocasionais e das encenações, e da retórica balofa do 1º Ministro, sobre a "defesa integral dos interesses nacionais", não trouxe nem novidades, nem surpresas, terminando como estava programado de antemão.

A verdadeira decisão, tomada em Amsterdão pelos chefes de Estado e de Governo dos 15, foi a de que "o Pacto de Estabilidade" é para cumprir , prosseguindo os critérios de Maastricht, com as suas graves consequências económicas e sociais para os trabalhadores e os povos. Em nome do Euro, esse, abre-te Sésamo, que nos redimirá de todas as dificuldades, ficamos a saber que deve continuar o processo de privatizações, a liquidação da segurança social pública, o espremer dos salários e uma maior desregulamentação das relações laborais. As multinacionais e o capital financeiro, ao fim e ao cabo quem verdadeiramente decide destas questões, podem continuar tranquilamente o seu trabalho de acumulação de grandes lucros.

A intensa e despudorada operação de intoxicação para enganar a opinião pública sobre o verdadeiro carácter das decisões tomadas, operação na qual o Engº Guterres participou activamente, socorrendo-se de algumas parolices lusitanas, não consegue esconder esta realidade cheia de maus pronúncios para o mundo do trabalho.

As preocupações com o emprego são pura mistificação, como o foram em muitos outros momentos. Não era objectivo da Comunidade Europeia alcançar o pleno emprego? E onde estão os 6 milhões de empregos prometidos com a criação do Mercado Único e os 15 milhões do plano Delors? As preocupações com as políticas sociais saídas da Cimeira de Madrid, tão badaladas pelo Engº Guterres, criaram postos de trabalho? Não, não criaram. A confirmá-lo estão os 20 milhões de desempregados, a precarização crescente do mercado de trabalho, um libelo acusatório às políticas neoliberais.

No preciso momento em que os governantes da União Europeia se esforçavam por fazer crer que estavam preocupados com o desemprego, umas tantas multinacionais, que acumulam lucros fabulosos à custa do desemprego anunciavam despedimentos que ultrapassam a centena de milhar e a nova vedeta do "socialismo democrático moderno" e que se considera herdeiro do Tatcherismo, Tony Blair, reclamava em Amesterdão uma maior desregulamentação do mercado do trabalho como forma de combater o desemprego, sabendo-se como se sabe que a desregulamentação do mercado do trabalho não cria postos de trabalho pois a sua função é exactamente a inversa, ou seja, facilitar os despedimentos.

O que se pretende com a liquidação da chamada rigidez do mercado de trabalho, com a desregulamentação, é dar livre curso à exploração, é fazer baixar o valor da mão-de-obra, é reduzir as suas necessidades permanentes, submetendo a força de trabalho às exigências da rentabilidade do capital, objectivo erigido em interesse geral da sociedade.

Também não faltaram, como sempre acontece nestas alturas, as perorações de escribas ao serviço do grande capital, cuja função é demonstrar a inevitabilidade do desemprego, estigmatizar os "interesses corporativos" dos trabalhadores (não dos capitalistas), esses seres obtusos que ao reclamarem o direito ao trabalho, à segurança social e outras conquistas sociais, não percebem que isso não é compatível com economias modernas, determinadas pela competitividade e o livre mercado.

E no entanto a Cimeira de Amsterdão revelou algumas novidades. Revelou que os governantes não ignoram que, por todo o lado, cresce a resistência e a luta popular contra as políticas neoliberais e que se torna mais forte a voz dos que se recusam a aceitar o desemprego, a miséria, a limitação de direitos como uma inevitabilidade e, muito menos, que isso seja sinónimo de progresso e de civilização para que as Bolsas funcionem como autênticos casinos.

Se é certo que, em Amsterdão, os Governos decidiram prosseguir a mesma política é igualmente certo que a luta dos trabalhadores da Europa vai continuar. O seu desenvolvimento é uma questão incontornável, que nenhuma demagogia poderá ultrapassar. A amplitude da luta de massas, a sua persistência, a entrada em acção de novos contigentes, a sua coordenação e a exigência de profundas mudanças políticas e económicas, mostram que não se está perante um fenómeno conjuntural.

Se o Governo do Eng. Guterres, navegando alegremente no mar das mistificações e esgotada a tanga do diálogo, julga que - anunciando a baixa da inflação, aumentando os preços; a redução do desemprego, limpando ficheiros e alterando classificações; a melhoria das condições de vida congelando salários, e a modernização da democracia restringindo direitos, conseguirá impedir o desenvolvimento da resistência à sua política, está muito enganado. À medida que se vão perdendo as ilusões quanto à política do PS, aumenta o número dos que se dão conta de não haver diferença entre a política guterrista e a cavaquista. É visível o ampliar da frente social que se opõe à política do Governo PS. Multiplicam-se as lutas dos trabalhadores ferroviários, dos mineiros de Aljustrel, dos trabalhadores precários da F. Pública. Em luta têm estado igualmente os agricultores, os pescadores e os estudantes. Vai-se reanimando a acção contra as privatizações. Milhares de trabalhadores, com destaque no Norte do país, travam há vários meses uma intensa luta pela redução do horário de trabalho, pela defesa de importantes direitos, contra o processo de desregulamentação do horário de trabalho.

E no entanto, no passado dia 15 de Maio, os deputados do PS, surdos a esta luta e aos protestos de diferentes sectores e entidades da vida nacional, renunciando a promessas eleitorais, mantendo-se fieis aos compromissos com o patronato, chumbaram a iniciativa legislativa do PCP que visava clarificar a lei das 40 horas e salvaguardar importantes direitos dos trabalhadores em matéria de horário de trabalho. Embora se perceba, parafraseando alguém, que o PS está amarrado ao princípio de que quem passa o cheque é quem define a política, não deixa de ser grave que os compromissos com o patronato se tenham sobreposto aos interesses do mundo do trabalho.

Como graves são, além de intelectualmente desonestas, as elucubrações com que a Ministra do Emprego e o seu Secretário de Estado procuram cobrir estes compromissos.

 

Com cristãos destes...

A luta pela redução do horário de trabalho e sua fixação em lei é tão antiga quanto a existência do trabalho e do capital. Dos horários de 15, 16 e mesmo 18 horas diárias até aos dias de hoje, percorreu-se um longo e difícil caminho para a afirmação do movimento operário. Só a luta tenaz e cheia de sacrifícios de sucessivas gerações tem conseguido contrariar os apetites insaciáveis do patronato em explorar ao máximo a força do trabalho e impor a redução do horário do trabalho. Antigas são igualmente as tentativas do patronato, inclusivé com o recurso à utilização coerciva do Estado, quando as circunstâncias lhe parecem favoráveis, para tentar anular essas conquistas.

Neste findar de Século, quando vemos desenvolver-se uma ofensiva generalizada contra as conquistas sociais dos trabalhadores e o reavivar de velhas práticas de exploração, mais se torna indispensável a vigilância, a organização, a unidade e a luta dos trabalhadores.

Na lógica da valorização do capital não cabem princípios morais ou humanos. O patronato, como classe, considera um desperdício o tempo que as máquinas estão paradas e um atentado ao livre funcionamento do mercado imporem-se travões à possibilidade de explorar ao máximo a mercadoria força de trabalho.

A questão das pausas, mesmo as destinadas ás refeições, não é coisa nova, como novo não é o patronato ver na redução do horário de trabalho, uma calamidade, o "juízo final da indústria".

No passado, para o patronato só interessava "o trabalho puro" (sem pausas), hoje interessa-lhe o "trabalho efectivo" (igualmente sem pausas), ou seja, a mesma coisa..

Marx, em "O Capital", obra que está recheada de abundantes exemplos das acções do patronato para ampliar os períodos do "trabalho puro", cita o caso de um economista, W. Petty, que, num escrito do fim do século XVII, concluiu que se se reduzisse em meia hora diária o tempo de refeição dos trabalhadores e estes jejuassem à Sexta-feira, se poderia aumentar significativamente a riqueza produzida. Para o capital, obviamente.

É espantoso como passados 300 anos, as afirmações, por exemplo, do Secretário de Estado do Emprego sobre as pausas e o período das refeições de quem trabalha por turnos e as dissertações do patrão da CIP, Nogueira Simões, se inspiram nas teorias de W. Petty.

Nogueira Simões, em entrevista a um jornal, ao ser-lhe perguntado se as pessoas não precisavam de parar para comer, respondeu: "Dantes (os trabalhadores) trabalhavam nove horas seguidas e não havia pausas no meio". (1)

Certamente que só por uma questão de pudor cristã o sr. Nogueira Simões se mostra saudoso dos horários de nove horas, ao fim e ao cabo, uma bagatela se comparada com os vulgares horários de 15 ou 16 horas de que os seus irmãos de classe no século XIX sujeitavam homens, mulheres e crianças.

Como seria bom para o patronato se os tempos dos longos horários de trabalho pudessem voltar. Mas os trabalhadores estão dispostos a lutar pela redução do horário de trabalho, uma necessidade para a humanização da vida dos que trabalham, para reduzir o desemprego e tornada possível pelo crescimento vertiginoso da produtividade do trabalho.

Que a luta continua, é coisa que o Governo cristão/opus de António Guterres e o patronato podem ter como certa.

(1) "O Diabo" de 6/2/96