EM FOCO



Pode o capitalismo parar e pensar?

por Sérgio Ribeiro


O capitalismo, este capitalismo agora predominantemente financeiro e transnacional, faz lembrar o ciclista que, em cima duma "máquina infernal", vai todo lançado e não pode parar porque, se parasse, caía. Por isso, não liga a sinais de trânsito, faz de conta que não vê os assustadores avisos vizinhos das passagens de nível - "pare, olhe, escute"! -, e lá vai ele, cada vez mais depressa, sempre mais depressa. Até porque já não corre por velhas estradas como as das voltas a Portugal, mas pelas auto-estradas da informação de que tomou posse como se tudo o que o homem inventa fosse para seu lucro e desfrute. Contra os homens!
Só estes o poderão fazer parar.

1. Em França, não se trata (só) do M. Juppé ser substituído pelo M. Jospin. Nem, no Reino Unido, um Major teria passado a soldado raso para ser promovido a primeiro ministro um rapaz Tony, Blair de seu apelido. Como, em Outubro de 1985, Cavaco Silva, doutor em finanças, não terá cedido o seu lugar a António Guterres, engenheiro com pós-graduações em "obras divinas".

Quem viu assim, ou assim quis ver, engana-se ou quer enganar outros. E só assim será por, tão preocupados com os sinais aos mercados - das finanças -, quererem esquecer ou não deixar que se lembre que o que colocou os senhores Guterres, Blair e Jospin onde estão foi uma rejeição clara da política que os seus antecessores representavam.

Ora os senhores Cavaco, Major, Juppé não eram a política que, a votos, foi chumbada. Eram só intérpretes (excelentes) dessa política, e ela pode seguir - "the show must go on" - com outros intérpretes que não prestem atenção aos sinais de trânsito que são claríssimos no sentido de imperioso mudar de direcção.

Tão imperioso que nem faltou, em França, o susto do voto na Frente Nacional, o partido que é o sinal de que o fascismo existe. E existe porque há fascistas e estão atentos para aproveitar todas as distracções e fazer o "ciclista" percorrer caminhos de antigamente. E quem o diz é, por exemplo, o ex-chanceler Schmidt quando escreve ao director do Bundesbank e lhe lembra o dramático resultado da obsessão estabilizadora dos preços e monetarista dos anos 30.

Mas até neste voto tão preocupante há sinais. Porque, de certo, muitos dos que o materializaram quiseram, com tal voto, dizer não à política que têm sofrido e não faltam fantasmas a tornar difícil transformar o voto-não de quem é de uma classe na tomada de consciência de que há classes e que a essa se pertence. São as fáceis presas da falta de escrúpulos e da demagogia próprias dos fascistas e foi um sinal, este de duplo sentido, e a nenhum presta atenção o "ciclista" na sua louca carreira.

 

2. Não quer dizer que a sua correria seja a direito e em aceleração constante. O que aconteceu em França, mais do que noutros lugares por ter sido em França e por ter havido um acordo para mudanças reais que levou ministros comunistas ao actual governo, tinha mesmo de perturbar a postura sobre as duas rodas. Assim a modos de um vento contrário que se levantou, já que os sinais à beira da estrada não bastam.

Beliscar o "pacto de estabilidade", pô-lo em causa, pretender discuti-lo é, na verdade, mais do que um mero sinal. Cheira, até, a iconoclastia. E houve quem assim o tivesse sentido e quem, mesmo sem o sentir, o dissesse. Talvez para acalmar os ditos mercados. Para lhes dar sinais tranquilizadores.

O caso é que desde há muito se vinha negando sequer a possibilidade de discutir o que discutido estava, e tudo o que se lhe ia somando no caminho da construção do instrumento/moeda única, assim impondo, sem qualquer discussão, as políticas que servem os interesses transnacionais.

O "pacto de estabilidade" e os seus companheiros "programas de convergência" podem assemelhar-se à cereja que se coloca no cimo do bolo. Envenenados, quer o bolo, quer a cereja, dizemos nós, também há muito insistindo, de fora para dentro da lógica da imposição da moeda única, na sua discussão.

Ou seja, depois da moeda única, impor-se-ia ter de continuar ainda com maior rigor, para que não haja folgas na estratégia e políticas que servem o capital transnacional. Tal o fim do "pacto de estabilidade" & Cia. e foi o que houve o atrevimento de questionar. O seu excessivo e exclusivo rigor monetarista, estabilizador de preços, cego para os problemas do crescimento, do desemprego, da exclusão social.

Não mais. E sem pôr em causa a estratégia, as políticas, a lógica/pretexto da moeda única. Mas suficiente para perturbar.

 

3. Que resultou do incidente, que acidente não chegou a ser e em Amsterdão se procurou recuperar?

Primeiro, desvalorizar o facto, que terá grande significado, de uns votos e, sobretudo, a movimentação social que está por detrás desses votos, terem obrigado a discutir o que estava

decidido não ser discutido.

Em segundo lugar, uma resposta aos sinais que se gostariam de ignorar, dizendo que sim, senhor, que há muita preocupação com o desemprego, que há que "fazer coisas".

Mas que coisas? Isso já é pedir demais. As pressões pró-keyneseanas que apareceram muito oportunamente, procurando forçar a abertura de práticas de intervenção criadoras de emprego, não tiveram qualquer tradução efectiva. Nem o Fundo de Investimentos Europeu que Delors tinha em sua memória de uma cimeira anterior, nem o BEI com meios para aí voltados, nem essa coisa dos fundos da CECA quando acabar lá para o próximo milénio, que o eng. Cravinho descobriu e com que acenou aos incautos, nem os "euro-bonds" (empréstimos para lançar obras "pública"), nada de concreto saiu de Amsterdão.

Nada de concreto. E poderia sair algo de concreto, quando a intenção clara era a de passar rapidamente adiante, continuar a corrida, forçar a marcha e vencer o vento contrário que soprava? Quando se sabe (quem sabe...) que o desemprego é uma variável estratégica desta estratégia, que a estabilidade dos preços é o motor e a meta, os carretos e a camisola amarela?

Ter sido confirmado que o emprego é só residual e que a preocupação quanto ao desemprego é a de não o deixar passar a fronteira do socialmente suportável.

O facto é que, para efeitos de opinião pública, se quis tornar claro que se discutiu o emprego, que se juntaram mais afirmações e artigos nos tratados àqueles em que o desemprego é preocupação e o emprego objectivo.

Mas não demos já para este "peditório"?

 

4. Entretanto, continua a correria. E, para que não haja dúvidas, anunciou-se, em Amsterdão, que as moedinhas de 1 cêntimo a 2 euros, serão hipo-alérgigas e facilmente identificáveis pelos cegos. Assim se provou, aos cépticos, invisuais e eventualmente alérgicos ao níquel, que nada fará parar a "máquina infernal" da impressão e cunhagem que foi sendo laboriosamente montada para a moeda única e para o também único Banco Central.

Mas nada mudou? evidente que sim. O que se está a tentar fazer - e Amsterdão tê-lo-á mostrado - revela a necessidade de recuperar, quanto mais não seja o equilíbrio anterior ao "abanão" para que continue a corrida.

Assim acontece, nesta perspectiva, porque em sucessivas eleições não houve apenas mudanças de nomes, e demonstraram que os movimentos sociais que andam aí por todo o lado, que não se podem esconder apesar de tanto se combaterem e desvalorizarem, têm expressão eleitoral. Que os povos, chame-se-lhes cidadãos ou eleitores, não estão tão indiferentes e resignados como se poderia temer.

 

5. Termino com uma nota que se pode dizer "de leitura". O nosso tempo é o tempo em que José Saramago escreve esse livro terrível e belo que é "Ensaio sobre a Cegueira" e um livro como "O horror económico" tem um sucesso (talvez) surpreendente. Sobre este livro, com toda a empatia que me mereceu, mas também com um grande distanciamento quanto a questões de fundo, ficarão comentários para outra oportunidade. Para agora, só o aproveito para dizer que o livro, e o seu sucesso, são uma demonstração de que o capitalismo não pode, não é capaz de parar e pensar, mas que os homens, sim! E estão a fazê-lo.