A TALHE DE FOICE



O Dia Um


Já não bastava o Alçada Baptista a querer ir-nos ao Hino, afundando-lhe os canhões.

Um grupo não identificado de «notáveis» (assim os referiram no telejornal) pretende agora mexer-nos no 10 de Junho - Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.

Que está inadequado - dizem os notáveis - tanto no dia como na comemoração.

A data devia mudar para 24 de Junho e a designação para «Dia Um da Nacionalidade». E porquê?

Nada mais óbvio: o dia 24 de Junho é o aniversário da batalha de S. Mamede. Ora quem diz batalha de S. Mamede diz D. Afonso Henriques a derrotar a mãe nos arredores de Guimarães, quem diz D. Afonso Henriques a derrotar a mãe nos arredores de Guimarães diz D. Afonso Henriques a afirmar o seu direito ao Condado Portucalense, quem diz D. Afonso Henriques a afirmar o seu direito ao Condado Portucalense diz «Dia Um da Nacionalidade». Et voilà!

Eis o «Dia Um», que por acaso é a 24.

Todavia há a reconhecer - e este argumento adicional não deixa de ser relevante, apesar de não invocado pelos notáveis - que a data de 24 de Junho é nitidamente superior à de 10 de Junho: tem qualquer coisa como 14 dias a mais.

Corrida que está a lebre do 10 de Junho, apraz-nos sugerir ao grupo de notáveis mais algumas pistas onde libertar as suas demandas simbolico-refundacionistas.

Porque não propor a pá como símbolo nacional, em memória da grande padeira, passando os nossos manuais escolares a chamar aos castelhanos, sei lá, os «tostadinhos de Aljubarrota», os «papo-secos de Castela» ou os «cacetes da Brites»?

E que tal instituir o «Dia da Telha» em louvor a Mem Ramires, o cavaleiro de Afonso Henriques que, para se introduzir à sorrelfa com o seu grupo de assalto no castelo de Santarém, utilizou o telhado de um oleiro com oficina encostada às muralhas mais descuradas pelas sentinelas mouras? O facto de estar envolvida uma casa de oleiro torna o «Dia da Telha» ainda mais abrangente, do ponto de vista simbólico.

Teríamos, só aqui, umas comemorações de estalo. Já imaginaram, ó notáveis, o País inteiro alegremente à pazada a comemorar o «Dia Um» no dia 24, varrendo em alternativa e larga vantagem todos os telhudos do burgo no apropriado «Dia da Telha»?!...

Afirmações patrióticas desta envergadura confinariam definitivamente o «Dia D» à palhaçada hollywoodesca em que os americanos o transformaram, com dividendos óbvios para a nossa afirmação no espaço europeu.

Ocorre-nos, igualmente, festejar a conquista do Algarve com o «Dia do Corridinho Mouro», extrair da gesta marítima o «Dia do Biscoito», assinalar a reconstrução pombalina de Lisboa com o «Dia do Abano», fazer da fuga da corte de D. João VI para o Brasil o «Dia do Rotário», garantir a nossa ascendência em Viriato com o «Dia do Pastor Lusitano», afirmar os nossos pergaminhos jurássicos com o «Dia do Galinha» ou dos «Ovos da Lourinhã».

O que é preciso é não perdermos tempo com questões supérfluas como o desmantelamento do aparelho produtivo nacional, a apropriação do País pelo capital financeiro, a concentração da riqueza na mão dos monopolistas, a entrega dos recursos estratégicos aos interesses capitalistas, a instalação da lei da selva nas relações laborais, a proliferação do trabalho precário, do desemprego e da miséria, a falta de saídas profissionais para a juventude, a crise do Ensino, a degradação das responsabilidades sociais do Estado e etc. etc.

Ainda bem que há notáveis - estes e outros, muito mais identificados - a velar para que o povo português não se distraia do essencial.