TELEVISÃO



Variedades, memórias e revelações

por Francisco Costa


Muito boa gente se queixa - a meu ver com inteira razão - pelo facto de a RTP ter deixado à exclusiva responsabilidade do seu segundo canal aquilo que às vezes se nos apresenta como autêntico «frete» no cumprimento das suas obrigações mínimas em termos de serviço público. Mas, às vezes, damos por nós a olhar ali para coisas inqualificáveis, igualmente difíceis de imaginar como sendo passíveis de transmissão até nesse arremedo de «serviço público» que continua a ser o primeiro canal da RTP - porque essas coisas não deixam de ser, afinal, mais próprias do «lixo televisivo» dos privados.

É o caso de «O Amor em Hollywood», uma série que vem ocupando o espaço «Foyer» na RTP 2. E o espanto é tanto maior quanto aquele espaço nos habituara à transmissão de trabalhos de fundo, muitas vezes de carácter ensaístico ou documental, e quase sempre a propósito de outros programas ou ciclos de grande qualidade e prestígio nas áreas do teatro, da música ou do cinema, por exemplo, que a RTP 2 decidira programar nessa própria noite ou durante as semanas seguintes. Um espaço extremamente útil porque, no fundo, era uma solução adequada para preparar o espectador quanto a uma melhor aceitação do papel histórico de tal ou tal autor em qualquer daquelas áreas ou para uma mais perfeita compreensão de tal ou tal obra ou escola estética e que constituía, enfim, uma alternativa possível aos comentários de especialistas nacionais de relevo que a RTP em tempos convidava para fazer anteceder essas transmissões e que, quase por completo, ela fizera desaparecer dos nossos ecrãs - naquilo que, também neste campo, constitui mais um exemplo da progressiva substituição das capacidades nacionais nos campos da investigação e do ensaísmo por produtos pré-fabricados, às vezes sem dúvida vistosos, mas que não dão nenhum trabalho a «desenlatar»!

 

Gato por lebre

Entretanto, a questão fundamental está em saber se esses produtos (como se verá tantas vezes menos vistosos do que poderia antever-se) têm a dignididade e a qualidade minimamente suficientes para justificar o afastamento dos ecrãs nacionais de reputados especialistas portugueses nessas matérias. E a este propósito não posso deixar passar em claro um inenarrável documentário que, na primeira semana de Junho, foi incluído num outro espaço habitualmente prestigiado da RTP 2 - o programa «Artes e Letras» - o qual se destinava a enquadrar a transmissão que imediatamente iria seguir-se da primeira ópera («O Ouro do Reno») pertencente à tetralogia «O Anel dos Nibelungos», de Richard Wagner, transmissão que aquele canal começou a fazer na íntegra a partir de relativamente recentes e excepcionais produções destas óperas apresentadas no Festival de Bayreuth. (A propósito, tendo já passado três semanas, quando é que chega «A Valquíria»?).

O problema é que as melhores intenções são às vezes atraiçoadas pela desastrosa falta de qualidade dos produtos televisivos de que se faz uso. E, neste caso, esse tal documentário de origem alemã (ou austríaca?), debruçando-se como é natural sobre a lenda dos Nibelungos, revelava-se paupérrimo sobre todos os pontos de vista: imagem, som, documentação e insuficiente ou incompetente enquadramento histórico, para já não falar de uma primária e inqualificável realização. Uma verdadeira lástima! Neste sentido - pese embora o formato por vezes anti-televisivo de uma apresentação em estúdio desenquadrada da desejável iconografia (mesmo que essa opção sempre tenha sido da pura responsabilidade da RTP) - qualquer intervenção «ao vivo» de comentadores e especialistas como o saudoso Luís M. Alves, agora com lugar marcado no «Acontece», ou até Pontes Leça, teria sido preferível como introdução capaz e indispensável às exigências que, em termos de recepção, representa para o espectador não melómano uma tetralogia como «O Anel». Assim se viu de que forma também uma rubrica como «Artes e Letras» foi desaproveitada e subvertida na sua habitual função.

 

Sexo e videotape

Vinha este arrazoado retrospectivo a propósito dessa tal enormidade que, sob o título «O Amor em Hollywood», foi ou ainda está (?) a ser exibida em «Foyer». Mesmo que um tal título faça pensar numa série que poderia apenas privilegiar os amores e as paixões que assolaram e assolam as grandes vedetas do celulóide, os homens e mulheres célebres de uma das inegáveis capitais do cinema mundial como é Hollywood - temática de duvidosa relevância mas que, apesar e tudo, poderia «ter pernas para andar» - o facto é que tanto a sua forma como o conteúdo que revela são completamente inaceitáveis de figurar num espaço como «Foyer». Por que o chamariz do título em nada corresponde ao busílis da questão! O que ali se vê e ouve são verdadeiras vulgaridades que exclusivamente têm a ver com as actividades marginais ao mundo do cinema - apenas apresentado como alibi e pano de fundo, enquanto uma das mais destacadas actividades comerciais e industriais da região - já que, do que se trata, é de exibir com total despudor o «discorrer» e as «actividades» de proxenetas, prostitutas, ex-strippers, festas íntimas de «solteiros», aviões de aluguer destinados a fantasias sexuais, agências de casamentos, aluguer de pópós para «engate» de rua, conselheiros de sexo e venderores de talismãs e elixires para melhoramento de desempenhos nesta área, etc., etc. - tudo mais ou menos caucionado, de forma oportunista e mercantil, pelas intervenções de meia dúzia de «comediantes» e «actores» e «actrizes», de terceira e quarta categoria, em entrevistas dignas dos mais rasteiros tablóides ou revistas de «caras» que não vêem «corações». Se me permitem o termo, «fatela» é a única qualificação que tal série me suscita - coisa que é totalmente inadmissível num canal com as responsabilidades culturais da RTP 2 e que só pode demonstrar que, na melhor das hipóteses, ninguém viu antecipadamente o que mandou para o ar!

 

As histórias da História

Bem diversa é a intenção de uma série como «As Aventuras do Século XX», produzida pela BBC e que a mesma RTP 2 está a transmitir. Dizer-vos em que dia e hora ou com que regularidade é que é mais difícil, já que os três primeiros episódios foram transmitidos sem qualquer critério neste aspecto, mediando entre o 1º. e 2º. episódios dez dias e do 2º. para o 3º. apenas 24 horas! Tudo indica que, infelizmente, se trata de produto para «tapar buracos». Mas não nos precipitemos, é preciso confirmar.

O esquema desta série, que não ultrapassa meros critérios de arrumação de «curiosidades» do século e não se revela particularmente inventiva ou exigente na sua concepção e feitura, é extremamente simples, o que não quer dizer ineficaz ou inútil. Pelo contrário. Percebe-se que, no conjunto de séries televisivas que seguramente começarão a marcar o aproximar da passagem de milénio, ela se insere na perspectiva de fazer balanços de acontecimentos temáticos, através da utilização mais ou menos engenhosa de imagens e sons de arquivo.

Sob o chamativo subtítulo genérico «Casos que Entusiasmaram o Mundo» - uma tradução de certo modo forçada e literal do original - cada episódio da série ocupa-se de um tema concreto em particular. Assim, por exemplo, o primeiro episódio («Asas Sobre o Oceano») era dedicado a uma panorâmica pelas variadíssimas tentativas, coroadas de êxito ou defraudadas pelo desastre e pela tragédia, de travessia do Atlântico em avião, de Leste para Ocidente ou em sentido contrário. E como demonstração de que a série não privilegia apenas determinados arquivos em detrimento de outros, foi bom termos visto (das dezenas e dezenas de tentativas levadas a cabo desde 1910) imagens não apenas óbvias como as do vôo de Charles Lindberg em 1927 como até as da travessia do Atlântico Sul de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. O segundo episódio era dedicado ao paraquedismo, com imagens surpreendentes (pela «idade» dos originais) reveladoras de pioneirismos insuspeitados neste campo, como o dos saltos em queda livre, muito mais antigos do que poderia supor-se. Já o terceiro episódio se debruçava sobre um tema histórico particularmente insólito: a paulatina caça e descoberta, ao longo de todos estes anos e desde o final da II Guerra Mundial, de militares japoneses, muitos deles isolados da pátria e do conhecimento quanto à evolução do mundo exterior, escondidos, às vezes isolados ou aos pares, nas selvas da Birmânia, Malásia, Índias Orientais Holandesas, Filipinas e nos confins das muitas ilhas do Pacífico!

Para muitos dos espectadores, esta foi a recordação (ou a revelação) de casos dramáticos e inacreditáveis, cuja visão refrescou a memória ou avivou consciências. Se uma série com as ambições desta pode reavivar ou despertar estas revelações, certamente que ela é benvinda, em qualquer canal.