EDITORIAL


A grande ambição


O PCP interpelou o executivo de Guterres não sobre o que ele e os seus dizem de si, mas confrontando-o com os factos, com os resultados de uma orientação política

O debate que reuniu na televisão os três dirigentes de partidos com representação parlamentar - um deles também primeiro-ministro - não terá perdido muito com a falta de comparência do quarto convidado. Marcelo Rebelo de Sousa decerto apostou nos calores de Verão, que muitas vezes lavam a memória da opinião pública ou afastam do pequeno ecrã largas faixas de costumeiros telespectadores, nesta quadra de férias mais voltados para a lazeira de um passeio à beira-mar e mais propensos ao esquecimento dos aborrecimentos de todo o ano. Até às autárquicas, muitas ondas quebrarão nas praias, muita água passará sob as pontes, muita tinta será gasta a apagar a ausência daquele que gosta de se intitular como líder da oposição.

É que, se tivesse brindado a opinião pública com a sua presença e participação no debate, mais difícil seria esquecer a quase identidade de pontos de vista que o liga, e ao seu partido, às opções fundamentais da política do Governo de Guterres; mais fácil seria discernir, apesar da distribuição igualitária dos tempos não ter sido minimamente cumprida pela direcção do programa, que o debate se travava a dois - de um lado, o PS no Governo, com o PSD e o PP a ampará-lo nas escolhas; do outro, uma oposição verdadeira, protagonizada pelo PCP, cujo secretário-geral deixou vincada não apenas a crítica à política de direita do executivo de Guterres, como não se absteve de, responsavelmente, indicar as poucas áreas onde se verificaram medidas positivas, apontando-lhes as deficiências e insuficiências.

Mais importante, porém, que o debate, onde, em redondos discursos, foi dada oportunidade a Guterres de pintar de cor-de-rosa a actuação do seu Governo, e a Monteiro de fingir pobremente uma oposição que não se verifica nas opções determinantes da governação, foi o que se passou, há uma semana, no plenário da Assembleia da República, lugar muito arredado das celebrações mediáticas e onde, a muito gosto do poder, quase nada se passaria de importante para a vida democrática do País.

A interpelação ao Governo, da iniciativa do PCP, e a que o nosso jornal dá hoje, naturalmente, relevo, veio situar o debate político não apenas escolhendo um lugar de onde se pretende afastá-lo, como o veio pôr nos termos em que interessa aos portugueses e ao País que ele seja colocado: longe das dramatizações pseudo-desestabilizadoras e espectaculares de uma pouco eventual "demissão a prazo" de Guterres e do seu Governo, e ancorado sobre as questões mais sentidas pelos portugueses, sobre a política de direita praticada pelo PS no poder e sobre os seus resultados, avaliados ao fim de quase dois anos de prática.

De tal avaliação retira o PCP duas conclusões, que Carlos Carvalhas adiantou na sua intervenção, que o "Avante!" hoje publica: primeira, o PS violou ou deixou sem cumprimento muitas das promessas eleitorais que fez há dois anos durante a campanha para as legislativas, incluindo promessas constantes dos Estados Gerais e do Programa Eleitoral; segunda, o Governo afastou-se decididamente de uma política de esquerda e realizou no essencial, no que é mais estruturante, uma política de continuidade das políticas de direita dos governos/PSD de Cavaco Silva.

Também na Assembleia, com muito menos audiência que um debate televisivo, mas ainda assim para que constasse, não se coibiu o Governo de apresentar-se como autor de melhorias, parecendo não se dar conta do profundo desânimo e desencanto que grassa no País, nomeadamente em muitos milhares de cidadãos que votaram PS.

O PCP interpelou o executivo de Guterres não sobre o que ele e os seus dizem de si, mas confrontando-o com os factos, com os resultados de uma orientação política cujos traços fundamentais Carvalhas sublinhou, em sete notas, acusando o Governo de:

- ter abandonado uma séria perspectiva social da política em benefício do poder das forças de mercado;

- ter posto à frente dos interesses das pessoas as pressões dos lobbies dos grupos económicos e as exigências cegas dos mercados financeiros;

- sacrificar os interesses nacionais em benefício da construção de uma Europa federal e para ganho de grandes empresas estrangeiras que cada vez mais dominam a economia portuguesa;

- deixar os problemas fundamentais sem solução, governando mais para autopropaganda do que para o País;

- desbaratar o património público, num autêntico regabofe de privatizações e concessões de serviços públicos que torna o País num despudorado casino onde só ganham os grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros;

- defraudar os interesses e direitos dos trabalhadores, como designadamente fez com a promessa não cumprida das 40 horas, com a aprovação da lei da flexibilidade e polivalência, com a rejeição da reposição da idade da reforma das mulheres aos 62 anos ou com as ameaças do aumento da idade da reforma;

- ter ocupado sistematicamente o aparelho de Estado com "tachos para a rapaziada", os famosos boys que o Primeiro Ministro esconjurou mas a quem depois abriu a porta completamente.

Estas acusações são baseadas em factos e apoiadas em abundantes - e algumas bem trágicas - provas acumuladas ao longo de quase dois anos. Não se trata de opiniões sobre a realidade, mas da própria realidade que aí está a dizer como é má esta política e como tudo virá a ser pior se ela prosseguir. A interpelação do PCP, através do debate suscitado, veio confirmá-lo. Um debate que ainda deixou bem claro, tal como disse então Octávio Teixeira, que o Governo e o PS têm hoje um grande objectivo e uma enorme ambição e elegeram o grande inimigo. O grande objectivo do enfeudamento a Maastricht, a grande ambição de conseguirem o poder absoluto. Quanto ao grande inimigo, trata-se, obviamente, do PCP. O Partido que vai mostrando publicamente que cada vez mais o PS e o Governo substituem os princípios e valores por interesses; o Partido que mostra aos portugueses que há uma política e um projecto de esquerda em Portugal.