EDITORIAL


Em «boas mãos»



O leitor que tenha passado uma vista de olhos aos jornais dos últimos dias há-de certamente achar que vive num país estranho, que subitamente acordou em lugar de insólitos costumes e de práticas menos conformes. De repente fica a saber que o Governo - pelo menos metade dele - partiu para os brasis. Com Guterres à frente, onze ministros e secretários de Estado lá foram, em visita oficial e missão desconhecida. Outros ministros estão de férias - caso de António Vitorino. O lugar de substituição de Primeiro Ministro coube a Sousa Franco, um dos mais polémicos membros do executivo, que já suscita reticências e antagonismos no interior do Governo, na bancada parlamentar socialista e dentro do PS, do qual não faz parte. Ainda há dias veio a lume o diferendo que o opõe ao Secretário de Estado da Energia, este a defender a baixa do imposto sobre os combustíveis no momento em que o Ministro das Finanças avança com o seu aumento.
Os portugueses perguntar-se-ão sobre o significado a atribuir à promoção de Sousa Franco à condição de Primeiro Ministro «substituto». Ainda mais quando é voz corrente que o homem das Finanças é tão independente que raramente toma lugar em Conselho de Ministros com a desculpa de que é surdo ao que por lá se diz.

Remoendo sobre as razões de tal partida, o leitor há-de concluir que não há memória de uma tão numerosa comitiva a demandar a estranja; recordará que os Magriços eram doze, mas que nenhum foi a Inglaterra em missão governativa; que as equipas de futebol são compostas por onze membros efectivos e que o treinador costuma dirigi-las, mas não fazem parte do governo; que D. Manuel, há quase quinhentos anos, enviou uma luzida embaixada ao Papa, com vários bichos, mas nenhum fazia parte do ministério. Com um baque no coração, o leitor lembrará, por fim, que D. João VI abandonou Lisboa com a corte em peso, ao anúncio das invasões francesas.
A comparação, porém, revela-se forçada. É que João VI fugiu com medo das invasões, enquanto Guterres é um dos obreiros da maior invasão de que há memória na história do País - a grande invasão dos interesses estrangeiros que, via Maastricht, entrou em Portugal e solidifica as suas posições. A «França» já cá está.

O que terá levado Guterres a partir, em tão imponente companhia, para tão longínquas paragens? Decerto não esperará conseguir, à força do número, convencer os homólogos brasileiros do que quer que seja. Tal embaixada, aliás, terá deixado perplexos os governantes do Brasil, da Argentina e do Uruguai, onde não deve haver memória de tão espantosa visita, que cheira mais a vassalagem que a aproximação de interesses.
A melhor razão a encontrar para justificar a estrondosa partida de boa parte do executivo, enquanto outra se ausenta de férias, deixando a um polémico ministro a tarefa de assegurar os negócios correntes, é a de que Guterres terá achado que é mesmo tempo de descanso. O essencial da governação, por agora, está feito. E, no que toca à Assembleia, ocupada com a revisão constitucional, funciona uma operativa maioria. Exceptuando os comunistas, não há oposição.
O chefe do Governo parece mesmo substimar não apenas «o desencanto e a frustração» que na passada semana os comunistas, pela voz do secretário geral do PCP, discerniam em cada vez mais largas massas do eleitorado que levou o PS ao poder, mas também as vozes que no interior do seu partido se levantam contra a prática e o projecto de direita que Guterres lidera, apoiado no PSD e no PP. Entretanto anunciam-se a cada dia novas demissões e promessas de demissão, como se uma demissionite aguda tivesse tomado conta do PS após o Primeiro Ministro ter ele próprio ameaçado demitir-se se as coisas lhe não corressem de feição. A juntar-se aos deputados que anunciaram a sua saída da bancada socialista, e após o presidente da bancada ter brandido o espectro da demissão se a disciplina não fosse a que ele entende, há agora, segundo o «Expresso», um Secretário de Estado - o dos Assuntos Fiscais - a revelar a intenção de «bater com a porta».

A situação - a do País, a do Estado, a do seu partido - não parecem comover Guterres. A política de direita que tem aprofundado - em íntima convergência com o PSD e com o PP - vai de vento em popa. E o futuro dessa política fica em «boas mãos».
Até as análises de comentadores razoavelmente distantes dos pontos de vista do PCP confluem no sentido de demonstrar a identidade das posturas deste governo e do anterior, das suas políticas, dos seus chefes. Referindo que a «condição de gémeos partilhada por PS e PSD no apoio à meta da moeda única e da União Europeia esbate, irremediavelmente, as velhas diferenças», uma jornalista do «Expresso» assinala os esforços do PS e do PSD para «reforçar a sua identidade própria». «Mas os resultados», afirma, «acabam por esbarrar muito mais em questões de estilo do que propriamente no conteúdo das políticas concretas».
Por seu lado, Victor Cunha Rego, no «Diário de Notícias», inquieta-se com a «indiferença» dos portugueses perante os problemas que se agravam e as perspectivas que faltam: «Aposta-se tudo no "desígnio nacional" da moeda única e abre-se uma crise com a promessa de eleições antecipadas poucos meses antes da decisão europeia. Comprova-se a existência da pobreza e faz-se uma privatização como a da EDP. As contradições e as dúvidas sucedem-se, mas o País vai entrar ou já está de férias sem querer pensar nisso.»

É claro que, quanto a nós, concluímos diversamente. O País quer e pensa. Quem foi de férias foi Guterres e o seu Governo. Depois de ter tomado, de cumplicidade com o PSD e o PP, as medidas mais gravosas; continuando a governar-se dando entrada a mais boys, às centenas, batendo o recorde de Fernando Nogueira; assegurando-se de que a revisão constitucional, com o PS dependente de Marcelo e de Monteiro, está em «boas mãos». De direita.