Privatizações no sector bancário
A riqueza de todos
feita dinheiro de uns poucos
Ainda não há um mês, revelou o Banco
de Portugal, no relatório da administração relativo a 1996,
que cinco grupos financeiros arrecadavam mais de 90 por cento dos
lucros gerados pelo sistema bancário português, que conta 51
instituições.
Outros dados confirmam a acelerada concentração de capital
neste sector, facto que traz à memória os tempos em que os
defensores da abertura da banca à iniciativa privada
argumentavam com as vantagens que traria a maior concorrência...
As transformações em curso afectam a economia nacional, agravam
as condições de prestação do serviço aos clientes (e até de
selecção da clientela) e aumentam a exploração dos
trabalhadores da banca. Estas consequências são geralmente
ocultadas da opinião pública por um pesado véu de silêncio,
acompanhado por fotes campanhas publicitárias sobre os
ilusórios benefícios que estarão ao alcance do comum dos
mortais mal se dirija ao balcão de um banco.
Sobre as modificações verificadas no sistema bancário português, as consequências das privatizações neste sector e os perigos da actual linha de evolução da banca conversámos com os camaradas José Dionísio, do secretariado sindical do Banco Espírito Santo, bancário há 23 anos; Gaspar Martins, da Comissão de trabalhadores do BES e da coordenadora das CTs do sector bancário, e também da comissão sindical do Espírito Santo na Zona Norte, que é bancário há 29 anos; João Lopes, da CT da Caixa Geral de Depósitos e da coordenadora das CTs da banca, bancário há 30 anos; e Sebastião Fagundes, vice-presidente da Direcção do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, bancário há 28 anos, funcionário do Banco Nacional Ultramarino.
Antes das privatizações no sector bancário, houve oportunidades para analisar as eventuais consequências desse passo?
João Lopes - Várias tentativas de privatização do sector,
levadas a cabo ainda pelo Governo de Pinto Balsemão, foram
rejeitadas pelo Conselho da Revolução. Nessa época, algumas
estruturas de trabalhadores apontaram consequências - umas
nítidas, outras menos evidentes - que mais tarde se vieram a
confirmar. E desde sempre se denunciou que a privatização da
banca tinha motivos eminentemente políticos e não era
justificada por nenhuma razão económica ou social.
Também é verdade que a banca foi nacionalizada por razões
políticas, mas os resultados revertiam a favor do Estado. Com a
privatização, os resultados voltam a reverter a favor dos
banqueiros.
José Dionísio - Nesse debate, as discussões e as
reflexões situaram-se muito mais a nível da própria banca, dos
trabalhadores bancários, do que da sociedade em geral. As
consequências da privatização para a sociedade não foram
previamente debatidas nem analisadas. Agora é que se estão a
notar, apesar do forte bombardeamento ideológico em torno dos
bons resultados, da concorrência...
Sebastião Fagundes - Na altura da abertura do sector à
iniciativa privada, quando da alteração da lei de delimitação
dos sectores, com o Governo de Mário Soares, houve debate, houve
posições das estruturas dos trabalhadores, houve alertas...
Aprovada a legislação, o debate caiu muito e foram os
comunistas e outros activistas que connosco estão nas listas
unitárias quem manteve a discussão acesa. Recordo-me, por
exemplo, dos cinco encontros nacionais de representantes dos
trabalhadores bancários.
Mas as estruturas do PS e do PSD nos sindicatos ocupavam
posições que lhes permitiam contrariar esta linha, colocando-se
objectivamente do lado dos banqueiros, que na altura não eram
ainda os que são hoje, mas que encaminharam tudo para a
reconstituição dos grupos económicos re a concentração do
capital, a entrada do capital estrangeiro para posições mais
fortes do que nunca - o momento em que nós estamos e um processo
e um processo ainda não concluído.
A banca nacionalizada, como existiu, chegou a ser o tipo de estrutura mais favorável para os trabalhadores, para a economia, para a empresa e para os clientes dos bancos?
JL - A banca nacionalizada nunca foi aquilo que,
do nosso ponto de vista, deveria ser. E nunca o foi, não por
culpa dos trabalhadores e das suas organizações, mas por culpa
dos inimigos das nacionalizações.
SF - As nossas propostas para a banca caíram sempre em
saco roto...
JL - Propusemos, nomeadamente, acções de
reestruturação que nunca foram levadas à prática e que foram
boicotadas. O grande boicote partiu, directa ou indirectamente,
do poder político de então, que claramente colocou homens da
confiança dos ex-banqueiros à frente de bancos nacionalizados.
Esta gente, embora pudesse fazer juras de amor às
nacionalizações, estava ali para afundar as nacionalizações e
criar condições para permitir a reprivatização; foram
nomeados como gestores da banca nacionalizada, mas procederam
como os seus coveiros.
As discussões sobre o papel da banca nacionalizada nem puderam
ser muito aprofundadas, mas até algumas ideias nobres e
interessantes que surgiram acabaram por ficar no papel.
Mesmo com estas limitações, a banca nacionalizada, enquanto
tal, tinha um potencial de intervenção - a nível social, a
nível do desenvolvimento da economia, a nível dos direitos dos
trabalhadores e até do ponto de vista da independência nacional
- que se perdeu com a abertura do sector à privatização. Por
isso defendemos que, mesmo com limitações, a banca continuasse
nacionalizada; uma vez privatizada, a sua acção subordina-se
aos objectivos dos proprietários dos bancos, que são muito
diferentes.
Mesmo com o bode
a guardar a horta....
Gaspar Martins - Apesar de todas as deficiências e de terem
posto o bode a guardar a horta - ao entregarem a gestão a
autênticos testas-de-ferro dos antigos banqueiros -, a banca
nacionalizada foi muitas vezes o instrumento de que os governos
se socorreram para atenuar alguns problemas que surgiram no
tecido económico. Foi assim, por exemplo, com formas de apoio a
pequenas e médias empresas, sistemas de incentivos ao
investimento... O Estado contava com a banca como um forte
instrumento para responder a necessidades económicas e sociais.
JL - O próprio Ramalho Eanes, quando Presidente da
República, reconheceu por exemplo que, se não existisse banca
nacionalizada, seria muito mais complicado responder às
consequências do processo de descolonização.
SF - O BNU ainda hoje pertence ao único grupo financeiro
do Estado. Tal como o ex-Banco de Angola, o BNU foi nacionalizado
logo em Setembro de 1974, e não a 13 de Março de 1975, com a
restante banca. Já era maioritariamente do Estado, foi o
sustentáculo daquela primeira fase em que era necessário manter
empregos, criar empregos, pagar a frota da TAP, pagar a Ponte
sobre o Tejo - compromissos que vinham de trás e que, com os
meios do banco, não era difícil assegurar. Com a
descolonização e a transformação do BNU nos bancos centrais
das ex-colónias (à excepção de Angola), o Ultramarino foi
capaz de suportar a vinda de milhares de trabalhadores para o
Continente, garantindo empregos e reformas; em determinada
altura, saldadas as contas e cumprido o dever como banco
nacionalizado, nomearam uma administração que foi levá-lo até
ao fundo.
Este é mais um exemplo de como a nacionalização da banca
serviu a economia nacional e os interesses dos trabalhadores. Com
a reprivatização pioraram as condições de trabalho, os
direitos foram reduzidos, diminuiram os postos de trabalho, as
tabelas salariais vão-se degradando... Quem ganhou com a
reprivatização foram apenas meia-dúzia de grupos económicos.
GM - Apesar de tudo, a banca nacionalizada dava lucros e
era lá que o Estado ía buscar importantes verbas. Agora, os
lucros vão para os banqueiros...
Outros interesses predominam
JD - A banca nacionalizada, enquanto motor do
desenvolvimento, em termos económicos e sociais, tinha um tipo
de relação quase familiar entre os trabalhadores e os clientes.
Com a privatização, perdeu-se esta cultura e o contributo que
desta forma se dava para o desenvolvimento regional. Os homens
que agora dominam os bancos estão virados para uma selecção de
clientela segundo critérios em que predomina o lucro esperado,
enquanto a banca nacionalizada actuava procurando levar a
sociedade a aceitar novas tecnologias e novas formas de pensar e
agir. Não podemos esquecer o grande boom das pensões de
reforma (cujo pagamento a banca privada tem vindo agora a
procurar rejeitar), as facilidades no preenchimento de cheques...
pensava-se no serviço bancário e na angariação de clientela
com outras preocupações, que não a maximização dos lucros.
Há uma vasta área de clientes que a banca, a pouco e pouco, vai
excluindo de forma deliberada, devido aos critérios adoptados de
selecção de clientela, subordinados a tal lógica.
GM - Veja-se, ainda a propósito, o que sucede com o Plano
Mateus: a viabilização dos projectos depende dos bancos, mas o
Estado só tem a Caixa Geral de Depósitos, que não está
vocacionada para esse tipo de operações, e os bancos privados
não têm interesse em acorrer às empresas com dificuldades. Sem
instrumentos de execução, um plano assim está condenado ao
fracasso.
Mas a verdade é que os bancos privados colocam como objectivo,
antes de mais nada, o lucro. A prová-lo está o facto de que,
mal os banqueiros privados chegaram ao sector, o cliente passou a
pagar tudo.
Antigamente, era normal que se oferecessse o primeiro livro de
cheques depois da abertura da conta, os serviços de pagamentos
de contas de águas ou luz eram gratuitos... Agora paga-se tudo
isso, e com língua de palmo. O objectivo não é tanto servir o
cliente, mas sobretudo obter lucros.
SF - Muitas transformações ainda irão ocorrer nos
próximos anos. Muitos bancos mais pequenos correm o risco de
desaparecer. Com a moeda única, são os próprios organismos da
União Europeia a calcular que o número de postos de trabalho na
banca seja reduzido drasticamente, enviando para o desemprego
entre 200 e 500 mil trabalhadores. Não podemos é encarar isto
como um fatalismo. As estruturas representativas dos bancários
têm de ponderar isto tudo e tomar medidas para travar esta
evolução, construir uma unidade dos trabalhadores que dê
respostas concretas à ofensiva dos banqueiros. Nós defendemos o
diálogo, mas há já provas concretas de que o diálogo não
chega para evitar que sejam os trabalhadores a pagar os custos
das decisões dos banqueiros. Por muita modernidade que haja, o
facto é que de um lado estão exploradores e do outro lado
estão explorados.
Notam alguma reacção dos trabalhadores e dos clientes dos bancos a essas transformações?
JL - Os trabalhadores estão a reagir negativamente, porque
estão a sentir os efeitos na sua pele. A questão que se coloca
é como se pode inverter este processo de concentração de
capital e que, como dizia o Sebastião, ainda não acabou. As
previsões apontam para uma maior concentração e há quem
admita que os grupos fiquem reduzidos a três ou, no máximo,
quatro. Isto vai ser feito à custa dos trabalhadores, que vão
ser cada vez mais explorados, e dos clientes, que ficam sujeitos
ao funcionamento dos bancos em cartel todo-poderoso.
Mas coloca-se aqui outro problema: a comunicação social
silencia completamente tudo o que ponha em causa as
privatizações. Em relação a outros temas, podem ser mais
liberais, podem dar mais alguma atenção. Só que as
privatizações são um tema sagrado: podem vir assistir a
sessões, podem ouvir relatos de muitos escândalos, mas
silenciam tudo. Sem acesso a esta informação, é muito difícil
que a opinião pública desperte para estes problemas; pelo
contrários, as pessoas são permanentemente bombardeadas com
grandes doses de loas à iniciativa privada e às alegadas
vantagens da banca privada.
Os resultados das eleições para o Sindicato dos Bancários do
Sul e Ilhas também representam um reflexo das preocupações dos
trabalhadores e da maneira como estão a preparar-se para
enfrentar os problemas que pressentem vir aí. Ao votarem numa
lista que integrava os comunistas e outros activistas unitários,
escolheram aqueles que sabem, por experiência, que mais
firmemente defendem os interesses dos trabalhadores.
SF - Esta atitude é ainda mais notória nas eleições para as comissões de trabalhadores. Agora as eleições no SBSI têm uma clara leitura política, que é a rejeição pelos bancários de uma aliança do Partido Socialista (cujo aparelho e dirigentes com altos cargos no PS e na UGT) com o PSD. Esta leitura foi confirmada nas reacções que nos chegaram já depois das eleições.
Enganados e iludidos
JL - Isso é claro, tal como hoje é mais vasto o número
de bancários com consciência da situação que se vive no sector e dos
perigos que estão latentes. Mas o grosso dos bancários e dos clientes ainda não tem essa noção
e, se as coisas continuarem assim, vai aperceber-se dos problemas já quando estiver muito
encostado à parede.
JD - Este é um problma que não se coloca só no nosso
sector, mas na sociedade em geral. Com o volume de desempregados que temos,
que se faz na nossa sociedade para defender postos de trabalho? Há ameaças às
reformas, mas que faz a generalidade dos reformados para defender os seus direitos? Em termos
económicos, há alguém que saiba e dê a conhecer, por exemplo, qual o peso do
crédito concedido (pelas inúmeras vias hoje utilizadas) relativamente ao Produto
Interno Bruto? Estamos a gastar por conta do PIB de que ano? Como pode a generalidade das
pessoas reagir, quando o próprio Governo aceita uma situação escandalosa como se
verificou com o Plano Mateus, em que bancos com milhões de contos de lucros solicitam
condições vantajosas para pagarem as suas dívidas ao fisco e à Segurança Social?
GM - A clientela dos bancos é de tal maneira solicitada
pela publicidade para acorrer aos serviços bancários, que fica com a ideia
de que há muito por onde escolher. Os anúncios oferecem crédito à habitação, crédito
ao consumo, cartões, contas... Até para mim já me ligou um colega, sentado ao telefone uns
andares mais acima, a propor-me negócio em nome do banco. As ofertas são feitas de
tal forma que as pessoas nem se apercebem de que estão a ser sugadas.
Volto ainda ao caso da EDP: toda a
gente foi levada a correr aos bancos, a comprar acções, porque iria ganhar dinheiro. Mas quando as
pessoas forem ver quanto vão pagar ao banco pela operação irão apedrceber-se de que
não foram elas quem, na realidade, ficou a ganhar com a compre das acções.
SF - Há coisas pequenas em que as pessoas não podem
deixar de reparar: pagam hoje serviços
que antes eram grátis, aumentaram escandalosamente os preços de
outros serviços e as taxas
sobre as operações bancárias, debitam despesas de expediente
no valor de contos de reis...
Entretanto, os custos com pessoal continuam a ser, na banca, dos
mais baixas na economia
portuguesa e os bancários ainda são obrigados a trabalhar sem
ganhar, para além da hora de
serviço.
JD - Isto é um verdadeiro roubo aos bancários. Em vez da
Inspecção do Trabalho, que de vez em quando aplica multas de cinco
contos aos bancos qaue são apanhados com trabalho extraordinário não remunerado, quem
devia visitar as agências era a polícia, à procura de quem está assim a roubar os trabalhadores
de forma premeditada e organizada.
Há taxas que estão a ser aplicadas
e àcerca das quais o cliente nem sequer é previamente informado. É sacado. Os bancos arrogam-se o direito de sacar
aos clientes e de sacar aos trabalhadores, e entretanto convivem alegremente com o
poder político, vão com ele em comitiva - mais, prestam-se a ajudar o poder político na
corrida para a moeda única, que também lhes interessa.
JL - Gradualmente cria-se assim uma situação a que o 25
de Abril pretendeu pôr termo, que é o domínio do poder económico
sobre o poder político. Isso ´re visível na passagem - que para mim é um regresso - de
ex-governantes para o quadro de grupos financeiros. Mas recordo também que houve uma série de
áreas que estiveram vedadas à banca nacionalizada, estipulando a lei que os
bancos só deviam tratar de dinheiro; agora deixou de ser assim, os bancos podem entrar
noutras actividades e voltam a constituir-se os monopólios.
JD - Olhamos para as privatizações e vê-se como
Champalimaud compra grandes empresas
e se candidata a privatizações, leva milhões e milhões de
contos... Viu-se como aumentaram
de preço as acções da EDP e fica-nos a dúvida sobre o que
não se terá passado com
bancos onde houve um só candidato à privatização. Hoje os
banqueiros estão a
funcionar, não com os resultados do mercado, mas com os frutos
da banca nacionalizada: a
riqueza criada, o saber, a dedicação e o esforço dos
trabalhadores.
Os comportamentos dos grupos que
hoje dominam a banca é igual ao das empresas dos outros sectores, e isto não foi sempre
assim. Mas chegam a ir mais longe na violência da exploração e no desrespeito das leis,
com conhecimento de causa e com staffs de apoio: violam a legislação do trabalho, rompem
com as regras tradicionais do mercado bancário...
Se antes havia alguma ideia do
banqueiro que merecia confiança do mundo laboral e do mercado, hoje ele é o mais retrógrado
dos patrões e aquele aue mais suga a economia nacional, nas mais diversas áreas e não
só no mercado financeiro, e que usa o seu poder económico para isso.