O horror económico.... do capitalismo
Por Sérgio Ribeiro
Em vários momentos da leitura de L'horreur
économique, de Viviane Forrester, desejei ter sido eu a escrever
o que lia. Não (só...) pelo sucesso que o livro tem mas pela
denúncia, pela oportunidade, pela lucidez, pela indignação.
Pela força e pela comunicabilidade da escrita.
Essas razões todas juntas, que justificam o desejo sentido de
ser capaz de escrever algo assim (em português, claro),
justificam também o surpreendente êxito de um livro que, sendo
um ensaio sobre política e economia, tem tido sucessivas
traduções e edições (impresso na edição original há três
meses, a tradução portuguesa já vai na sua 3a. edição!).
É um livro de choque, de lucidez e coragem na denúncia do
capitalismo contemporâneo.
No entanto... No entanto, a autora parece esgotar-se nessa
denúncia e à brutalidade da situação que tão bem retrata
responde com uma evidente falta de perspectiva (de classe, diria
eu), tropeça numa quase estranha ausência de cultura ou
referências marxistas, foge quanto pode de se comprometer, de
"tomar partido", fecha o livro com a aparente audácia
de uma palavra bela e justa mas que apenas deixará consciências
tranquilas, apaziguadas. Talvez a começar pela da autora, com o
devido respeito (que é a tal palavra bela e justa)...
Porquê este tão gritante paradoxo em livro? Porquê o seu impacto e êxito?
Comecemos por aí.
O êxito de "O horror
económico" estará mesmo no facto do livro ser
paradoxal. Aliás, tendo sido pedido à autora, pelo L'Humanité,
para comentar a afirmação que essa denúncia não teria o
sucesso que está a ter se tivesse sido assinada por Robert Hue,
Viviane Forrester foi clara na fuga a dar uma resposta clara, a
tomar posição... Ela pretende ser - apenas! - uma escritora que
tem o direito a indignar-se.
Óptimo. Sadia indignação, sobretudo porque se está
espalhando, porque alastra por muitos milhares de leitores.
Porque, vencendo um receio de ridículo, face ao "pensamento
único", se atreve a falar de vergonha e de medo. A vergonha
de haver desemprego e de se estar desempregado, o medo do futuro.
Que caracterizam o tempo que vivemos tantos de nós, em que
tantos de nós sobrevivem.
Mas bastará?
As duas perguntas-chave
Neste comentário - que não é mais que isso -, parece-me de
sublinhar que o livro começa por colocar duas perguntas-chave:
1. Para se ter direito a viver é preciso "merecer" esse direito?
2. "É 'útil' viver se não se é lucrativo para o lucro?"
Todo o texto se pode considerar
como uma resposta, desapontada e indignada, a estas duas
questões.
Na sociedade em que vivemos, prova-se que é preciso
"merecer" o direito a estar vivo. E a (única) forma de
o merecer seria a de se ser lucrativo, de se inserir numa lógica
de lucro. Seria esta a única forma de termos o direito a estar
vivos porque a única forma de o merecermos. O que vale para as
empresas e sectores produtivos, a partir de critérios de
competitividade " à la Maastricht", e para os homens.
É sobre os homens que Viviane Forrester escreveu o seu horror...
à economia. E esse horror deriva da interpretação de que os
homens só são lucrativos - só merecem viver... - se
trabalharem, se tiverem emprego, numa sociedade em que se estão
a acabar, a destruir os empregos. Ou seja, em que se destroem as
condições para que os homens, quase todos os homens, mereçam
viver.
Toda a denúncia de como esta economia conduz a
esta situação e evolução previsível é (para usar palavra
muito pertinentemente repetida) lúcida.
Mas esta economia, baseada na exploração da
força de trabalho, é "única"? Curiosamente,
recusando a sua abordagem o "pensamento único", VF
trata a economia como se fosse só uma, esta,
baseada neste tipo de relações de produção. Por isso, tendo
estado mesmo à beirinha de detectar o fundo da questão, a
contradição maior, passou-lhe ao lado. Porquê?
A nosso ver por duas razões.
Trabalho e força de trabalho
VF não faz a
distinção entre trabalho e força de trabalho. Porque na sua
bibliografia não entram determinados autores que, sobre este
tema, teriam sido apoios indispensáveis, sem que tal queira
dizer argumentos de autoridade.
Aliás, esta distinção é perfeitamente essencial, e Marx e
Engels, eles próprios, começaram por não a fazer e só tarde -
mas a boas horas - a ela chegaram.
Por isso, a maior parte das vezes que VF escreve sobre trabalho
está a escrever sobre força de trabalho e a maneira como esta
é utilizada (empregada e não empregada ou desempregada) nas
relações particulares de um modo de produção. O capitalista.
Confundir-se trabalho, qualidade humana intrínseca, libertadora,
com a mercadoria força de trabalho, e seu emprego nas
condições do modo de produção capitalista, leva a que se
anatematize o trabalho por aquilo que é a perversa utilização
da sua força.
Uma pergunta seria interessante: achará ou não VF que o tempo
que dedicou à escrita do seu livro foi ou não tempo de
trabalho, e achará ou não que o tempo que se dedica leitura do
seu livro "pode ser", também, tempo de trabalho, sem
que, nesses tempos, haja emprego de força de trabalho, no
sentido capitalista que é o único que considera?
Pode o capitalismo sobreviver
sem exploração de força de trabalho?
Esta é uma outra questão. Sendo um sistema contraditório, o
capitalismo supera as suas contradições. Ao ler VF fica-se com
a ideia de que o "trabalho está a acabar", que tal é
inevitável, que toda a evolução da "horrível
economia" vai no sentido de dispensar o emprego da força de
trabalho.
Há aqui dois vícios ou equívocos. Um, muito
"europeu" e, ainda mais, "francês". É o de
se reflectir como se o mundo acabasse nas fronteiras da Europa e
a França fosse o seu umbigo.
O facto de haver tanto desemprego em França, e na União
Europeia, e da evolução previsível ser a de agravamento dessa
situação, não é paradigma e não quer dizer que não esteja a
haver massas de homens e mulheres a acederem ao "mundo do
trabalho" e a passarem de fases de précapitalismo para uma
assalariação - com a sua mercadoria força de trabalho a formar
novos "mercados de trabalho" - em condições sociais
infra-humanas.
Segundo equívoco será o de se pensar que o capitalismo, essa
"horrível economia", poderia sobreviver sem o seu
alimento essencial que é a mais-valia, criada e apropriada
através das relações de produção que o/a caracterizam. Os
chamados "exércitos de reserva de mão de obra" - já
foram crianças, mulheres, são sempre os desempregados - são,
no capitalismo contemporâneo, as massas de trabalhadores
recem-assalariados. O que só é possível porque os capitais
circulam sem quaisquer peias, técnicas ou sociais.
Libertinamente.
Outra economia... não horrível
A economia poderá não ser horrível.
Parece-me evidente que sim. Baseada no trabalho e nos seus
valores. Não na exploração da força de trabalho e na sua
mercadorização.
Mas não é facto que, com a evolução tecnológica, menos
trabalho vivo será necessário para se transformar a natureza e
ter acesso aos bens e produtos (de todo o tipo) de que o homem
necessita, porque há trabalho "morto", cristalizado em
instrumentos que do trabalho vivo nasceram, que substitui cada
vez mais o trabalho vivo necessário?
Também é evidente que sim. Mas isso só faz com que o homem
fique mais livre, menos tenha de dedicar o seu tempo ao trabalho
necessário, o possa reduzir, mais tempo ganhe para ler,
escrever, pensar, fruir da vida. Organizar o seu tempo de vida
menos condicionado pelo tempo em que tem de empregar - ou de
vender - a sua força de trabalho para viver, como parte do
colectivo. Porque tem o direito de viver sem ter de o merecer
vendendo a sua força de trabalho!
O respeit(inh)o é muito bonito, mas os trabalhadores não são
explorados por não os respeitarem mas porque criam mais-valia. E
só a tomada de consciência de classe e a luta podem
libertar-nos dos horrores da economia capitalista.