Um livro muito verde
sobre a Segurança Social
Por Eugénio Rosa
A Comissão do Livro Branco da Segurança Social,
nomeada pelo governo, acabou de tornar público um documento a
que chamou " Livro Verde". E pode-se dizer que "a
montanha pariu um rato". E isto porque, como provaremos,
algumas das principais questões com que se debate a Segurança
Social no nosso País, não mereceram, por parte da Comissão,
ou, pelo menos, por uma grande parte dela, grande atenção.
Mas antes de avançar mais, interessa já chamar a atenção para
a falta de consenso que existe a nível da própria Comissão,
já que ela cindiu-se em dois grupos, um encabeçado pelo seu
presidente, Dr. Correia Campos, e o outro liderado pelo Prof.
Boaventura Santos, com pontos de vistas diferentes, para não
dizer mesmo antagónicos.
Como se sabe, um dos objectivos mais importantes da Comissão do
Livro Branco da Segurança Social, criada pela Resolução do
Conselho de Ministros nº 22/96, era estudar as diversas
alternativas e apresentar propostas de medidas que garantissem a
sustentabilidade financeira futura da Segurança Social. No
entanto, pode-se afirmar, sem grande margem de dúvidas, que tal
objectivo não foi alcançado. E isto porque questões
fundamentais, cuja resolução é vital para garantir a
sustentabilidade financeira futura da Segurança Social, ou foram
puramente ignoradas, ou então foram tratadas de uma forma
ligeira e pouco profunda. Pelo contrário, a Comissão perdeu uma
grande parte do seu tempo a estudar e debater questões que
interessavam mais às seguradoras e a sociedades pertencentes a
grupos económicos. Serve de exemplo, a questão do
"plafonamento" dos salários.
Como se sabe, os defensores do "lobby" das seguradores
têm procurado apresentar o "plafonamento" dos
salários como a medida que resolveria os problemas financeiros
da Segurança Social. Em termos simples e facilmente
compreensíveis esta medida resume-se no seguinte: os
trabalhadores e as empresas em que trabalham no lugar de
entregarem a totalidade dos descontos à Segurança Social, como
actualmente sucede, passariam a entregar apenas uma parte à
Segurança Social, passando a ser obrigados a entregar o resto a
companhias de seguros e a empresas gestoras de fundos de
pensões. Como consequência, o valor da pensão que os
trabalhadores passariam a ter direito a receber da Segurança
Social baixaria, ficando a outra parte dependente de uma empresa
orientada pela lógica do lucro.
De acordo com os cálculos feitos pelo próprio grupo liderado
pelo presidente da Comissão, a implementação de uma proposta
daquela natureza determinaria uma redução de encargos para a
Segurança Social, num período de 40 anos, de cerca de 471
milhões de contos, a preços actuais, o que significa uma
poupança média anual de 11,7 milhões de contos. É evidente
que uma poupança de 11,7 milhões de contos num valor total de
despesas de 1.250 milhões de contos por ano, que é o valor
actual, representa uma pequena gota, não resolvendo nada. Para
além disso, a sua aplicação determinaria que durante os
primeiros 15 anos se verificasse uma redução importante da
receita sem se observar qualquer diminuição de encargos.
Confrontados com esta conclusão pelo Prof. Ferreira do Amaral,
um dos defensores do plafonamento acabou por confessar que o seu
objectivo não era a resolução dos problemas financeiros da
segurança social, mas sim aumentar a eficiência do mercado de
trabalho e do mercado de capitais, ou seja, aumentar o mercado
para seguradoras e empresas financeiras, portanto objectivos
estranhos à Segurança Social. O grupo da Comissão liderado
pelo Prof. Boaventura dos Santos opõe-se, e bem, ao plafonamento
dos salários.
Questões importantes ignoradas
Em contraste com a grande atenção que mereceu a questão do
plafonamento dos salários, questões vitais para assegurar a
sustentabilidade futura da Segurança Social, ou foram pura e
simplesmente ignoradas ou mereceram uma reduzida atenção por
parte do grupo liderado pelo presidente da Comissão.
Alguns exemplos.
No regime geral, a chamada pensão mínima inclui, como se sabe,
uma parte importante não contributiva, que é a diferença entre
o valor da pensão mínima e o valor que o pensionista receberia
se a pensão fosse a estatutária (a calculada com base nas
regras que se aplicam aos restantes pensionistas). Esta
diferença custou à Segurança Social, só em 1995, cerca de 256
milhões de contos, e tem sido paga apenas pelo regime que
abrange os trabalhadores por conta de outrem. Apesar desta
grave injustiça, ela não mereceu qualquer atenção por parte
do grupo da Comissão liderado pelo Prof. Correia Campos.
Presidente da Comissão
propõe perdão de dívidas
Outro grave problema no campo financeiro que enfrenta a
Segurança Social é o desvio de importantes meios financeiros
pertencentes ao regime geral, ou seja, ao regime que abrange os
trabalhadores por conta de outrem, para outros fins, devido ao
sistemático incumprimento por parte do Estado de obrigações
que estão estabelecidos na própria lei. Efectivamente, com o
dinheiro dos descontos do regime geral tem-se pago, ao longo dos
anos, as despesas da acção social, a pensão social, o regime
especial dos agrícolas, etc., ou seja, tem-se feito
assistência, acção social, e solidariedade apenas à custa do
regime dos trabalhadores por conta de outrem, quando, de acordo
com a lei, tal despesa devia ser suportado por toda a sociedade
através de impostos. De acordo com o grupo da Comissão liderado
pelo seu presidente, a dívida do Estado à Segurança Social
resultante desse incumprimento sistemático atinge já 1.200
milhões a preços correntes, portanto a preços não
actualizados. A proposta do grupo do Dr. Correia Campos é que
essa divida devia ser perdoada ao Estado, porque não seria
viável o seu pagamento, em nome de "imperativos de
realismo" (?). O grupo da Comissão liderada pelo Prof.
Boaventura Santos chega a uma dívida, a preços de 1996, de
cerca de 7.300 milhões de contos, e propõe que o Estado
entregue anualmente os juros correspondentes a essa dívida, que
seriam suficientes para garantir durante muitos mais anos a
sustentabilidade financeira da Segurança Social.
Como se sabe, outro problema importante que existe a nível do
regime geral é o chamado regime dos independentes, que abrange
já mais de um milhão de portugueses, com grandes desigualdades
traduzidas em múltiplas taxas e bases de cálculo, em que a
manipulação de carreiras contributivas é prática corrente, em
que se desconhecem os custos presentes e futuros de cada um dos
subregimes, etc.. O mínimo que se poderia esperar da Comissão
do Livro Branco é que ela estudasse profundamente estes
subregimes, que clarificasse completamente cada um deles, e que
apresentasse propostas concretas para acabar com as injustiças e
manipulações que continuam a existir. Serve de exemplo o
aumento significativo dos salários dos administradores com
idades compreendidas entre os 60 e os 64 anos, que provocou a
perplexidade da própria Comissão. No entanto, o grupo da
Comissão liderado pelo seu presidente pouca ou quase nenhuma
atenção prestou a esta importante questão, não apresentando
também qualquer proposta credível neste campo.
Outro problema que enfrenta a Segurança Social, com
implicações graves na sua situação financeira, é o aumento
contínuo das dívidas das empresas. O seu valor já atingia no
fim de 1996 cerca de 400 milhões de contos, sem incluir juros, e
esta dívida continua a crescer a uma média avaliada em cerca de
50 milhões de contos por ano . Seria legítimo esperar que a
Comissão se debruçasse sobre esta problemática, que a
analisasse profundamente, que estudasse a experiência de outros
países neste campo, e que apresentasse propostas fundamentadas
para a eliminar ou, pelo menos, para pôr cobro ao seu continuo
aumento . Infelizmente, esta questão importante não mereceu
a devida atenção por parte da Comissão.
Ausência de quaisquer medidas
contra a fraude
Tal como acontece a nível de impostos, também em relação aos descontos para a Segurança Social a fraude e a evasão atingem valores extremamente elevados. No próprio relatório da OCDE sobre Portugal referente a 1996 se refere este grave problema. De acordo com estimativas que fizemos, esta fuga custou à segurança social, só em 1996, mais de 600 milhões de contos de receitas perdidas. Reduzir esta fuga representaria uma importante contributo para garantir a sustentabilidade da segurança social. Infelizmente, também esta questão não mereceu qualquer atenção por parte do grupo liderado pelo Dr. Correia de Campos.
É sabido que o sistema de contribuições das empresas para a Segurança Social, em que os chamados descontos são calculados com base na massa salarial, mostra-se cada vez mais inadequado. E isto porque a situação actual é muito diferente da que existia há cerca de 50 anos quando o sistema foi criado. Naquela altura as empresas que mais produziam e que mais lucros tinham eram as que empregavam mais trabalhadores. Actualmente, as que têm maiores lucros são as empresas de capital e de conhecimentos intensivos. Para além disso a precarização do trabalho é cada vez maior, e as empresas procuram transferir para os trabalhadores a totalidade do encargos com a Segurança Social, como acontece com os falsos independentes. Portanto, haveria que estudar profundamente esta nova problemática, e apresentar propostas alternativas de sistemas de contribuições pelas empresas mais consentâneos com a realidade actual, e com as mudanças já previsíveis a curto e médio neste campo. A Prof. Manuela da Silva, numa intervenção que fez aquando da apresentação do "Livro Verde" chamou precisamente a atenção para este ponto fundamental. É portanto com espanto que se constata que ele não mereceu qualquer atenção no chamado " Livro Verde".
Resumindo, é fundamental que no novo " Livro Branco" a sair até ao fim do ano, até para a credibilizar a própria Comissão, todas estas lacunas e incongruências mereçam um tratamento diferente e sejam ultrapassadas.