Realidade virtual
«Os políticos não ganham o suficiente. O exercício do
Poder é uma grande responsabilidade e deve ser recompensado...»
As palavras são de Almeida Santos, presidente da Assembleia da
República, em declarações ao «Tal&Qual» da semana
passada, que a propósito do seu próprio vencimento mensal
ilíquido - 1.339.744$00 (um milhão trezentos e trinta e nove
mil setecentos e quarenta e quatro escudos) - assevera que
«se não tivesse tido uma carreira de sucesso como advogado,
não dispunha agora de dinheiro para estar na política: tinha
que continuar na advocacia...».
Se estivessemos no Carnaval, poder-se-ia pensar estarmos perante
uma brincadeira de mau gosto. Mas não estamos. E como não houve
qualquer desmentido, resta aceitar como fidedigna a transcrição
e daí retirar as necessárias ilações.
Em primeiro lugar, cabe reter que um milhão trezentos e
trinta e nove mil setecentos e quarenta e quatro escudos por
mês - ilíquidos que sejam - é pouco para Almeida Santos; em
segundo lugar, infere-se das palavras de Almeida Santos que ele
ainda paga do seu bolso para estar na política e exercer o
Poder, ou seja, que está a fazer um favor ao País pelo qual,
presume-se, se lhe deve estar grato.
É sabido que conceitos como «muito» e «pouco» podem ser
relativos, e que cada um pode, no uso da sua própria liberdade
de pensamento e de expressão, considerar pouco o que para outros
será muito, e vice-versa. Acontece porém que Almeida Santos
exerce um cargo de Poder num país que tem o nível de vida mais
baixo da Europa comunitária, onde o salário mínimo não vai
além dos cinquenta e seis mil escudos, as pensões de reforma
são objectivamente de miséria, o desemprego e a exclusão
social se estão a tornar num verdadeiro flagelo, onde mesmo as
camadas médias estão a léguas das suas congéneres europeias.
Pelo que é no mínimo ofensivo que o presidente da AR se queixe
de ganhar pouco, quando esse pouco representa, por exemplo, 24
salários mínimos e muitas mais pensões de reforma com que
sobrevivem milhões de portugueses, tão dignos quanto o
presidente da AR e com tanta legitimidade como ele a verem
recompensada uma vida de trabalho.
Mas a queixa de Almeida Santos - partilhada de resto por muitos
dos seus confrades políticos, como António Costa, secretário
de Estado dos Assuntos Parlamentares, que garante que «lá em
casa, o orçamento é que teve de se adequar ao ordenado
(717.800$00)», ou mesmo o deputado Manuel dos Santos, cujos
657.910$00 são «chapa ganha, chapa gasta» - a queixa de
Almeida Santos, dizia-se, é ainda mais grave pelo que representa
de profundo divórcio com o país real.
Como podem pessoas como estas entender os problemas da grande
maioria da população, para quem comprar um livro, ir ao cinema
ou ao teatro, ou simplesmente comer decentemente todos os dias,
vestir-se, ter assistência médica, continua a ser um luxo?
Que sabem estes políticos da angústia de quem tem o desemprego
como única perspectiva de futuro?
Que sabe este punhado de gente do medo de envelhecer quando isso
significa a degradação das mais elementares condições de
dignidade humana, pela ausência de uma política de efectiva
protecção à velhice?
Almeida Santos - todos os Almeidas Santos - vivem num mundo
virtual onde o país real há muito deixou de ter lugar. Talvez
seja isso que explique, afinal, os milhares de empregos virtuais
que, diz-se, estão a ser criados na agricultura, quem sabe se à
espera que um milagre os materialize.
A.F.