TRABALHO


Governo insiste em soluções
falhadas para o caminho-de-ferro

Prejuízos da CP
mantêm pais incógnitos



«O truque fundamental que os analistas de direita, infelizmente alguns ligados ao PS, utilizam para justificar a continuação da estratégia cavaquista que conduziu ao desmantelamento da CP, reside na referência insistente aos prejuízos da CP, sem nunca se preocuparem com a responsabilização por tais prejuízos. Dir-se-ia que os prejuízos da CP, que já andam pelos 72 milhões de contos anuais e ultrapassam os 500 milhões de contos no défice acumulado desde 1988, são órfãos. Mas o que estes prejuízos são é filhos de pais incógnitos. O que há é muita gente que não tem coragem nem dignidade para assumir as suas responsabilidades. Foi assim com o cavaquismo e continua a ser assim com o Governo do PS.
Não encontramos outra explicação para o facto de o ministro João Cravinho ter chegado à tutela da CP com o propósito frenético de prosseguir e agravar o desmembramento da CP, iniciado há 6 anos pelo executivo cavaquista. O senhor engenheiro justifica a sua estratégia de continuidade com os elevados prejuízos apurados em 1996. Mas o que o senhor engenheiro não mostrou foi qualquer intenção de apurar responsabilidades, embora o Governo se dê ao luxo de pôr o aparelho do PS na CP a denunciar "derrapagens" e "corrupção" na empresa,
como se estivesse na oposição.»
Esta citação de um documento das células do PCP na EMEF e na CP, em análise num plenário realizado em Maio no Porto, justifica-se como ponto prévio a uma conversa sobre o caminho-de-ferro e a perspectiva da entrega a privados das suas áreas mais rentáveis. Mas, se este era o ponto de partida, a verdade é que a entrevista com Juvilte Madureira, da Comissão de Trabalhadores da CP, e José Manuel Oliveira, dirigente da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Ferroviários Portugueses e membro da CT da CP, acabou por ir mais longe e projectar-se em algumas medidas que, apesar de todos os erros cometidos pelos governos do PS e do PSD, ainda podem ser tomadas para corresponder às necessidades do País e das populações, respeitando os legítimos direitos dos ferroviários.


«Avante!»: Como pode haver interesse por parte de investidores privados num grupo como o da CP, a cujas contas estão há vários anos associados elevados défices?

José Manuel Oliveira: É muito provável que não haja nenhum grupo privado com interesse na CP, se encararmos esta de uma forma global. Por isso, como temos denunciado, surgiu o plano de reestruturação, que visa isolar sectores, de forma a que os mais rentáveis suscitem a apetência das empresas privadas, enquanto os menos rentáveis serão suportados pelo Estado.

Só que com isto, na nossa opinião, é posta em causa a noção de serviço público do transporte ferroviário. Estando tudo integrado num mesmo grupo, os sectores mais rentáveis podem gerar meios de financiamento dos menos rentáveis. Com as coisas assim isoladas, o Orçamento do Estado irá pagar aquilo que é serviço social e as empresas privadas ficarão com as actividades ferroviárias que possam ser consideradas lucrativas.


A CP não é então, do vosso ponto de vista, uma empresa destinada a dar prejuízos?

JMO: De uma forma global, não há nenhuma empresa de caminho-de-ferro que dê lucros. Há serviços sociais que têm elevados custos e precisam ser assegurados. Agora, os prejuízos podem ser atenuados, com uma boa gestão e com o cumprimento das obrigações do Estado. O que vemos hoje é que o Estado não paga as indemnizações compensatórias ao preço que deveria pagar — ao longo dos anos tem havido um decréscimo das verbas e este ano foi anunciado um corte drástico, reduzindo as indemnizações compensatórias de 12,5 milhões de contos para 4 milhões. Somando a este incumprimento das obrigações do Estado os últimos anos de visível má gestão da empresa, tem-se como resultado a acumulação de prejuízos e o aumento do endividamento e dos encargos.

Juvilte Madureira: Há ainda outras agravantes. Por exemplo, é feita a divisão de linhas e, em seguida, procede-se à modernização das que pretendem privatizar ou concessionar a privados. São os casos das linhas de Sintra, Cascais e, possivelmente, a médio prazo, a linha da Póvoa (talvez integrada no Metro de superfície do Porto).

Isto começou em 1992, com a alteração dos estatutos da CP para permitir a sua divisão. Nós protestámos, prevenimos, denunciámos... O próprio Provedor de Justiça reconheceu razão a uma queixa da Comissão de Trabalhadores relativa a este processo, mas só o fez três anos depois, em 1995! E, por ter já passado tanto tempo, decidiu que não iria suscitar a questão da inconstitucionalidade da alteração dos estatutos da CP.

Com a concordância da maioria das câmaras municipais afectadas, começaram a verificar-se os encerramentos de ramais e estações, as substituições dos comboios por autocarros, os aumentos das tarifas dos autocarros que foram fazer o serviço da CP...

JMO: Houve uma primeira fase de encerramentos, ainda com o Governo PS e o ministro Rosado Correia, há quinze anos. Depois vieram os desmembramentos, nos governos do PSD. E só agora se avança para a passagem de empresa pública a sociedade anónima.


Neste quadro, não deverão ocorrer, a breve prazo, quaisquer privatizações no sector ferroviário?

JMO: Os sindicatos e a CT não vão ficar de braços cruzados. Vamos continuar a desenvolver a luta em torno dos objectivos que sempre considerámos justos, por melhor corresponderem aos interesses dos trabalhadores e das populações servidas pelo caminho-de-ferro. Vamos continuar a opor-nos à privatização.

A criação de condições para a privatização de sectores do transporte ferroviário, a verificar-se, levará ainda algum tempo. Poderão entretanto tentar avançar para a privatização de sectores que são complementares da actividade ferroviária, como a manutenção e reparação de material circulante. E pode também verificar-se a criação de empresas privadas a quem será permitida a exploração da infraestrutura ferroviária pública.

JM: E pode nem ser necessário privatizar, como já se viu no complexo Vouga-Dão. A CP decidiu acabar com o serviço, que passou a ser feito por outras empresas.

Já há alguns casos de sectores desmembrados que estejam a dar lucros?

JM: Não há dados que refiram serviços actualmente rentáveis. Isso pode vir a suceder nalguma das empresas resultantes das recentes modificações. A EMEF, por exemplo, deu resultados positivos; mas sendo a CP a fornecedora de trabalho à EMEF, é das contas da CP que saem esses resultados. A EMEF deu lucro, separada da CP; mas quando os sectores oficinais estavam integrados na CP eram capazes de dar menos prejuízos do que aquilo que a CP paga agora à EMEF.

JMO: E a qualidade do serviço era melhor.

JM: A própria Direcção de Material da CP elaborou um documento em que refere que o tempo de imobilização das unidades de material circulante é muito maior agora do que antes da formação da EMEF. Os trabalhadores foram reduzidos e tudo é feito tendo na mira o lucro.

A EMEF não tem hoje uma prevenção de avarias nos comboios, como havia antes do desmembramento. A CP fazia, por exemplo, em Outubro, uma prevenção anual, reapertando as mangueiras de borracha, para evitar perdas de água com a contracção dos materiais nos meses mais frios; hoje isso não se faz e, quando surge um problema desses, considera-se como uma avaria, e a CP vai pagar à EMEF para a reparar; a EMEF está interessada em que as coisas funcionem assim, porque lhe aumenta a facturação.

JMO: Costumamos dizer que os lucros da EMEF são prejuízos da CP, que é o seu único cliente.

A EMEF estará, então, entre as primeiras empresas do Grupo CP a privatizar?

JMO: Por aquilo que é conhecido através da comunicação social, há uma grande ofensiva da AD-Tranz (ex-Sorefame) que tem por objectivo adquirir a EMEF, e é admitido por governantes que esta seja uma empresa a alienar. Sabe-se que a ABB, a multinacional de que a AD-Tranz faz parte, alimenta o objectivo de ficar com a construção, reparação e manutenção de material circulante, não só a nível de Portugal, mas em toda a Europa.

Ouve-se dizer muita coisa sobre a EMEF, até se ouve dizer que há já pessoas da AD-Tranz a fazer levantamentos nas oficinas da EMEF, em termos de equipamento, instalações, etc.


O Governo também faz estudos...

JMO: Temos alguma preocupação de que as chamadas auditorias estratégicas que o Ministério do Equipamento mandou fazer às empresas afiliadas do Grupo CP, entre elas a EMEF, em vez de servirem para determinar debilidades e apontar medidas de investimento e desenvolvimento de certas áreas, venham apenas dar suporte a decisões políticas já tomadas.


A situação da EMEF repete-se nas restantes empresas do Grupo CP?

JMO: Nas empresas criadas a partir do desmembramento da CP durante os governos do PSD temos outros casos de resultados positivos, como a Fernave (formação profissional da CP, do Metro, da Transtejo, dos STCP).

Uma realidade diferente é a da Soflusa (transporte fluvial), uma empresa que nasceu já descapitalizada e tem tido prejuízos durante os 4 anos de funcionamento, agravados brutalmente em 1995 e 1996 — passaram de 20 mil para mais de 200 mil contos. A empresa está a perder passageiros, presta um mau serviço, tem uma frota de 8 barcos com mais de 30 anos e que praticam tempos de percurso iguais aos de 1960, e que tiveram um acréscimo de avarias depois da opção errada que foi retirar a sua reparação à EMEF para a entregar a empresas privadas. A Soflusa vive uma situação financeira muito crítica, mas não se vê, quer da parte do conselho de gerência da CP, quer da parte da Secretaria de Estado dos Transportes, qualquer decisão quanto a um plano para o futuro.

Nunca houve uma política de grupo. As empresas foram criadas, e passou cada uma a funcionar por si, esquecendo-se o produto final, que é a qualidade do transporte.


No projecto de reestruturação aprovado pelo Governo essa atitude mantém-se, ou nota-se alguma diferença nas orientações fundamentais?

JM: A CP é substituída por uma empresa responsável pelas infraestruturas (a REFER), outra que explora os comboios (a CP-Transportes) e uma entidade reguladora do transporte ferroviário. Sempre admitimos que houvesse uma autonomia contabilística destas áreas, mas não compreendemos a necessidade de uma divisão orgânica. Pelo que diz o ministro João Cravinho, tal como disseram anteriores responsáveis, no futuro serão criadas várias unidades de negócio na empresa de exploração do transporte.

JMO: Numa recente entrevista (DN, 14 de Julho), o presidente da CP-Transportes apontava para a criação de 4 unidades de negócio: mercadorias e logística, suburbanos de Lisboa, suburbanos do Grande Porto e serviços de médio e longo curso.


Poderá esperar-se, desta reestruturação, alguma melhoria do transporte ferroviário?

JMO: A melhoria do transporte ferroviário em Portugal não passa, no fundamental, pela divisão da CP. É preciso haver investimentos, é preciso que estes investimentos sejam bem geridos e feitos em tempo útil. Mas não é isto que se está a fazer.

O plano de reestruturação que conduziu ao primeiro desmembramento da CP previa investimentos que deveriam ser feitos até 1994, mas que só agora é que se estão a iniciar. As obras na linha do Norte começaram numa altura em que já deviam estar concluídas, a Beira Alta esteve bastante atrasada, na ligação para o Algarve nada foi feito...

São também necessários investimentos no material circulante, para além do que se fez na linha de Sintra e num ou noutro caso pontual; até na linha de Cascais circulam carruagens com 70 anos!

Investimentos, uma boa gestão dos horários, a articulação dos comboios com outros modos de transporte complementares, uma boa gestão dos recursos humanos e do caminho-de-ferro em geral — estas são medidas que levarão à melhoria da qualidade do transporte ferroviário. Para aplicar medidas como estas não é indispensável proceder a nenhuma divisão da CP. E só a divisão da CP, sem estas medidas, não conduz a qualquer melhoria substancial.


Pode supor-se que esses investimentos não são feitos agora pelo Estado porque se entende que deverão ser as empresas privadas a fazê-los no futuro?

JMO: Os privados irão eventualmente tomar conta das partes rentáveis do caminho-de-ferro depois do Estado ter feito os investimentos. Não são os privados que vão investir na modernização da CP.

JM: Hoje está a fazer-se a duplicação, modernização e electrificação da via entre Ermesinde, Valongo, Sête e Marco de Canavezes. Na futura unidade de negócios, qualquer empresa privada que pretenda pôr aqui comboios a circular usufruirá já destes investimentos públicos.


Admitem que se venha a investir novamente em alguns troços já encerrados?

JMO: Mesmo sabendo que são necessários grandes investimentos, nós defendemos hoje que a reabertura de algumas linhas encerradas ainda é possível e viável e corresponde ao interesse nacional, uma vez que há mercados a explorar (como o transporte de mercadorias para a construção do Alqueva ou o transporte de beterraba) e há necessidades a que o caminho-de-ferro tem que dar resposta (como a ligação de zonas do interior aos portos).

Só que tal decisão deverá ser acompanhada de medidas que aproveitem o valor da infraestrutura ferroviária para o desenvolvimento do interior, a fixação de populações. E o material circulante deverá ser adaptado às necessidades do transporte de passageiros nos ramais do interior.


Essa ressalva subentende uma crítica a decisões passadas?

JMO: A CP manteve durante anos comboios pesados, com custos acrescidos, apesar da diminuição da procura nas regiões do interior. Do ponto de vista técnico, a solução adoptada em Mirandela é a ideal para muitas linhas do interior: em vez de um comboio pesado, com locomotiva e carruagens, opta-se por uma composição mais ligeira, uma espécie de autocarro sobre carris, que tem maior mobilidade, mais rapidez, pode reduzir os horários e prestar um serviço com menores custos.

É necessário um plano ferroviário nacional, que poderá até prever a construção de novas linhas. Com os fundamentos necessários, a CT propôs recentemente, por exemplo, a abertura de uma nova ligação entre Mangualde e Viseu. Defendemos que a modernização da linha da Beira Alta não acabasse na Pampilhosa, mas continuasse até ao porto da Figueira da Foz, que ficaria assim ligado a um eixo internacional. Seria de todo o interesse a ligação de Viseu ao porto de Aveiro.

Há todo um conjunto de projectos a analisar, alguns deles em articulação obrigatória com Espanha, para permitir o melhor aproveitamento de todas as potencialidades.


Utentes prejudicados
e mal defendidos

«Avante!»: Depois de anos a fio de degradação da qualidade do serviço, como avaliam as relações actuais entre os trabalhadores ferroviários e os passageiros?

JMO: Por parte das estruturas representativas dos trabalhadores tem havido alguma preocupação de contacto com os utentes do caminho-de-ferro. Sabemos que não temos conseguido esse objectivo devido a dificuldades próprias e devido à pouca atenção da comunicação social, onde só somos ouvidos quando são convocadas greves e nunca antes, para as pessoas saberem o que se passa e os motivos das lutas.

No final de Julho fizemos acções de sensibilização durante uma semana, com a distribuição de uma tarjeta, de forma a manter as pessoas informadas acerca dos problemas e do conflito que está latente nas empresas e esclarecendo que o serviço prestado pela CP pode ser melhor, desde que haja uma nova política para o sector.

JM: As estruturas têm feito até aquilo que competiria à CP, que é dizer às populações o que se pretende fazer com o caminho-de-ferro. Quanto ao conflito latente, a verdade é que nem o Governo, nem a CP contribuem para um clima laboral mais calmo. O desmembramento tem custos sociais estrondosos nos trabalhadores e nas suas famílias; tal como na Lisnave, na CP também houve suicídios de trabalhadores. Como pode reagir um trabalhador que, no auge das suas capacidades e da sua formação profissional, é declarado «excedentário» e mandado para casa? Como é que querem ganhar os trabalhadores se, depois de dizerem na comunicação social que os direitos dos ferroviários estão defendidos, recusam as nossas propostas para que eles fiquem garantidos por escrito? Como é que os trabalhadores se podem, nestas condições, empenhar em ganhar as populações para o serviço da CP? Os utentes não têm nem podem ter uma boa imagem da empresa e isso reflecte-se na perda de passageiros.

JMO: Nas acções que temos realizado não há hostilização das pessoas em relação às nossas posições, há uma compreensão geral relativamente às lutas dos ferroviários. Mas também compreendemos que quem utiliza o comboio não veja as coisas como nós vemos. Mais do que saber quem lhes fornece o serviço — a CP ou outra empresa, pública ou privada — as pessoas querem é ser bem servidas e a preços baratos. Nós procuramos dar-lhes informação para que reflictam sobre os motivos que movem uma empresa pública, orientada pelo conceito de serviço público, e o objectivo único do lucro, que leva uma empresa privada a abandonar as actividades não rentáveis. E lembramos-lhes que as privatizações nos transportes rodoviários, como noutros sectores, não representaram um aumento da concorrência, tal como a existência de vários operadores ferroviários não irá significar um maior número de comboios na via.

JM: Choca-nos o facto de governos civis e câmaras municipais não tomarem posição neste processo em defesa dos interesses das populações. Antes pelo contrário: numa recente reunião no Governo Civil de Viseu, onde queríamos apresentar o nosso protesto contra o encerramento do serviço rodoviário Vouga-Dão, fomos confrontados com uma assessora que entregou à comunicação social um documento do conselho de gerência da CP onde se afirmava que os direitos das populações e dos trabalhadores estavam garantidos, quando isso não é verdade.

Alguma comunicação social e algumas personalidades tomaram posição contra o encerramento... Mais tarde virão os problemas ao de cima e esperamos que, então, sejam devidamente atribuídas as responsabilidades.

No imediato, as consequências não estão à vista. Mas, passado o período de transição, as empresas privadas ficam com as mãos livres e, então, surgem os protestos das populações, como no Vale do Tâmega ou do Nordeste transmontano.

JMO: As populações só sentem os prejuízos mais tarde, quando perdem os transportes alternativos ou quando são aumentados os preços dos bilhetes dos autocarros, ou quando diminui a frequência do transporte. Em muitos casos, apercebem-se disso numa altura em que já é muito difícil retroceder.