EM FOCO


O despertar dos cínicos

por Vítor Dias


SABENDO Deus e os homens que não costumamos passar a vida a elogiarmo-nos uns aos outros, estamos à vontade para salientar que o artigo de Octávio Teixeira «Verdades sobre o processo de regionalização », aqui publicado na semana passada, constitui uma oportuna e utilíssima contribuição para recapitular e situar aspectos essenciais do debate recente sobre a criação das regiões administrativas.

Com efeito, a recapitulação cronológica e política aí feita é preciosa de dois ângulos principais.

Do ângulo da ajuda que presta face à natural perda ou fragmentação de memória por parte da generalidade dos cidadãos, irremediavelmente afectados pela vertiginosa rotação dos temas e pela superficialidade e pelo assassinato da memória que fazem parte dos critérios estruturantes da maneira como a maioria dos «media» acompanha a vida política.

Mas também do ângulo do desmascaramento a que procede da legião de políticos do PS, do PSD e do PP que, sendo protagonistas directos dos acontecimentos, não se podem colar à falta de memória que compreensivelmente atinja a generalidade dos cidadãos. É que, para essa legião de políticos, a «falta de memória» que aparentam é sim o por si ansiado passaporte para a falta de escrúpulos, a mentira e a impunidade.

Lembrámo-nos disto ao ouvirmos ou lermos declarações recentes de Manuel Monteiro, de Pacheco Pereira e de Paulo Portas relativas à questão do referendo sobre a regionalização e da nova redacção, já votada na especialidade, para o artigo 256º da Constituição.

Concretamente, ouvimos Manuel Monteiro a reclamar, em discursata no dia 13 de Julho, que a única coisa que se devia perguntar aos portugueses é se estão de acordo ou não com a regionalização.

Lemos a intervenção de Pacheco Pereira, na AR, em 30 de Julho, minutos antes de se votar o artº 256º, e também o encontrámos a defender que «o verdadeiro referendo (...) é sobre se os portugueses pretendem ou não que haja regionalização». Acrescentando mesmo que, em caso de simultaneidade da pergunta de âmbito nacional e da pergunta sobre a área regional, «tudo aqui é confuso, tudo aqui conduz a uma trapalhada monumental», «se entra num embróglio total quanto à interpretação das respostas» e que «os juristas e o Tribunal Constitucional encontrarão certamente mil e uma razões para rejeitarem esta fórmula ».

Finalmente, lemos Paulo Portas ( no «Independente» de 1/8) a carpir que a solução adoptada «condiciona a verdadeira opção - sim ou não à regionalização de Portugal - a um facto praticamente consumado, traduzido no mapa regional já aprovado».

como é evidente, o PCP não tem nada que ver directamente com a parte substantiva desta guerra de palavras provocada pelo despertar dos cínicos.

Mas já temos o direito de não deixar passar em claro a desfaçatez com que estes cúmplices do PS nas soluções adoptadas para o referendo à regionalização pretendem agora marcar distâncias e sacudir a água do capote, tomando-nos a todos como parvos.

Assim, em relação a Manuel Monteiro e a Paulo Portas, será preciso que lhes lembremos aquilo que sabem perfeitamente? Ou seja, que a nova redacção votada para o artº 256º da Constituição (estabelecendo que «a instituição em concreto das regiões administrativas (...) depende da lei prevista no artigo anterior [a lei de criação] e do voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta directa, de alcance nacional e relativa a cada área regional») é filha legitima de um acordo bilateral entre PS e PP, negociado e celebrado em Maio de 1996.

Ou será que, indo mais ao pormenor, sendo à epoca Manuel Monteiro o líder do PP e Paulo Portas um activo representante do PP na Comissão de Revisão Constitucional, também precisam que lhes lembremos que esse acordo foi pomposamente divulgado em conferência de imprensa conjunta de Jorge Lacão e Jorge Ferreira na manhã de 13 de Maio de 1996, onde foram também divulgadas as duas perguntas acordadas entre ambos («concorda; com a instituição em concreto das regiões administrativas ?» « concorda com a região criada na sua área de recenseamento eleitoral?» ).

Em relação a Pacheco Pereira, acaso estará esquecido que, depois de umas semanas a asobiar para o lado, já no ínicio de Junho de 1996, o PSD se atrelava ao carro do acordo PS-PP, aceitando de facto o esquema de referendo que ele consagrava? E acaso estará esquecido de que, na CERC e em plenário da AR, o PSD votou o novo artº 256º, consagrando essa triste habilidade de, para fugir a uma inconstitucionalidade gritante, sujeitar a referendo não a regionalização mas a sua «instituição em concreto» ?

E se a tudo isto alguém quiser objectar que o peculiar posicionamento de Pacheco Pereira no PSD não permite responsabilizá-lo por tudo o que o PSD aprova, então as coisas ainda ficam mais feias para o mediático deputado,

É que, por essa via, Pacheco Pereira ficaria salvo do ponto de vista de critérios de coerência mas ficaria enterrado até ao pescoço do ponto de vista de critérios de frontalidade e de coragem política. Porque teria estado calado que nem um rato durante quase quinze meses e só teria resolvido abrir a boca minutos antes de ser votado o novo artº 256º da Constituição. Porque, convenhamos, esse já é um momento muitíssimo tardio para vir dizer que o esquema aprovado conduz à «confusão» e à «trapalhada». É que, há um ano, entre muitos outros exemplos, era um artigo por nós publicado no «Avante!» precisamente sobre o PS e os seus acordos com a direita sobre o referendo à regionalização que tinha o título de «Cedências, absurdos e trapalhadas».

Nessa altura, ou mesmo seis meses depois, é que teria dado jeito que, para aumentar o «granel», Pacheco Pereira e Paulo Portas, ainda que sendo defensores da sujeição da regionalização a referendo, tivéssem vindo dizer algumas das coisas que agora vieram dizer.

É fácil perceber porque não o fizeram. Para eles, primeiro era preciso aprisionar a concretização da regionalização nas malhas complicadíssimas dos referendos e, só depois de garantido isso, é que era possível passar à fase em que partidos e personalidades que não querem a regionalização já se podem desinteressar dos referendos, porque, sem eles, a regionalização fica automaticamente inviabilizada ou congelada.

Em boa verdade, e talvez seja este o ponto fundamental, o que as declarações de Monteiro, de Portas e de P. Pereira, bem como a declaração de Marcelo Rebelo de Sousa de que o PSD fará campanha pelo «não» (esquecido, como todos os PSD's incluindo Cavaco Silva, que a apresentação de uma proposta de Lei de Criação das Regiões Administrativas sem referendo era um compromisso [*] do último Governo de Cavaco Silva),vêm mostrar é que, em matéria de regionalização, o PS tudo foi cedendo ao PSD e ao PP em nome do ingénuo objectivo de os associar ao processo, e daqui para a frente os ingratos não só se preparam para não lhe retribuir nada como não deixarão de explorar todas as possibilidades de chantagem e de sabotagem que a revisão constitucional a votar em 3 de Setembro lhes vai oferecer.

De facto, sendo óbvio que, depois de 3 de Setembro, é para o PSD ou o PP que o PS se terá de voltar para fazer avançar toda uma complexa tramitação, não é difícil imaginar alguns dos próximos capítulos do folhetim: o PP a perder entusiamo com o referendo porque já ruiu o seu sonho de ficar sozinho a fazer campanha pelo «não»; o PSD a gritar que primeiro tem de ser o fantasiado «referendo europeu»; o PP a clamar ou fingir que primeiro tem de ser o da regionalização ; os dois a protestar contra a simultaneidade das duas perguntas sobre a regionalização ; os dois mais o PS a ponderar, em segredo, da oportunidade e lucro político de uma campanha eleitoral referendária poucos meses depois de uma campanha eleitoral autárquica; e tudo o mais que sempre é prometido pelo inesgotável espectáculo das fingidas desavenças entre os grandes aliados nas questões fundamentais.

Nada que, bem vistas as coisas, incomode grandemente o «núcleo duro» da direcção do PS que, com elevadíssima probabilidade, em matéria de regionalização e nos próximos seis meses, só terá um grande e verdadeiro objectivo final: sacudir para outrém as responsabilidades da inviabilização da regionalização que só ao PS pertencerão.

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(*) Compromisso que está estampado no 6º parágrafo da 1ª coluna da página 22 do respectivo Programa de Governo apresentado na AR em 11 Novembro de 1991).