A TALHE DE FOICE


Fondus


«Principalmente no Norte do país, mas não apenas aí, há uma quantidade incrível de asquerosos animais híbridos: minúsculos cães vira-latas que, arriscando a vida, se atiram para debaixo dos carros». Qual é o país, qual é ele, onde tão estapafúrdia coisa acontece?

Ninguém adivinha? Ninguém desconfia? Bom, então aqui vai outra, para ajudar: «Os namorados comportam-se de forma reservada, não tornando públicas as suas relações. Nos locais públicos, independentemente da camada social a que pertencem, os homens conversam só com homens, as mulheres com mulheres».

Então? Qual é o país, qual é ele? Ainda não chegaram lá? Deve ser do calor. Cá vai mais uma: «Nas conversas, não falem da família, principalmente das crianças. Este tema é sagrado!».

Qual é o país, qual é ele? Nem assim? Pois não se está mesmo a ver? Só mais uma pista e acabou-se, quem não descobrir, perde: «o descanso nacional são as conversas na rua» e «a religião é omnipresente como Deus».

O quê? Ninguém descobre? Ficou tudo obtuso? Ora fiquem sabendo que é Portugal. Não há como o verão para se descobrir estas coisas, seja por falta de assunto ou porque a época aconselha a um olhar mais atento aos potenciais turistas que hão-de arribar a terras de sul.

Pois é assim, sem tirar nem pôr, que «Le Petit Futé», roteiro francês editado em russo em 1996, descreve Portugal. Para quem não saiba, diga-se que «petit» significa pequeno e «futé» quer dizer inteligente, malicioso, astuto, finório, esperto, sagaz, manhoso..., pelo que se deixa à criatividade de cada um a tradução mais adequada para este pequeno... roteiro.

Para que não se pense estarmos perante qualquer má vontade dos franceses contra nós, vale a pena referir que também a editora alemã Polyglott tem um roteiro dedicado às lusas terras onde, a páginas tantas, se descobre: «Na província do Algarve, em condições subtropicais, crescem bananas e cana-de-açúcar»; «Nas Caldas da Rainha pode-se comprar uma recordação interessante: um vaso de cerâmica em forma de 'folha de repolho'»; «A nordeste de Portalegre encontra-se a serra de São Mamede, parque natural onde ainda vivem ursos». Nem mais!

Cá por mim é um problema linguístico: avessos que são ao estudo de outras línguas, franceses e alemães viram-se em palpos de aranha para entender os portugueses, poliglotas por excelência e senhores de uma língua consabidamente muito traiçoeira. Imagine-se o que poderão dizer se lhes chegar às mãos umas revistas da Madeira, daquelas com Jardim saracoteando-se de baiana, rei zulu ou em cuecas. Uma desgraça.

É claro que se torna necessário fazer qualquer coisa. A tradição das Caldas está de rastos, os alentejanos ameaçam deixar de inventar anedotas, os algarvios querem deixar de fabricar dons rodrigos, os adolescentes congeminam uma revolução sexual, as famílias estão à beira de se sublevar e os vira-latas exigem tratamento de lulu. Como diria um amigo versado em francesismos, ou se faz qualquer coisa ou estamos fondus. Que é como quem diz, fundidos, derretidos, dissolvidos... O que não é pouco.

Anabela Fino