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AMÉRICA
A descarada


A bem conhecida revista Time, uma exímia propagandista dos USA no mundo inteiro, publicou no seu último número, de 4 de Agosto, um "special report" (reportagem especial) de cerca de 30 páginas, com o título AMERICA/THE BRAZEN, precisamente "América, a Descarada", com um toque de sentido adicional que lhe confere também a dureza e solidez do bronze. O deliberado despudor do título corresponde bem à hábil manipulação apologética da peça, com todos os necessários condimentos para fazer passar a justificação ideológica do papel imperial que os EUA pretendem assumir, sem rival, neste final do século XX.


A "reportagem especial" vem elucidativamente precedida (p.10) por um desenho figurando um enorme Clinton de rosto angelical, vestido à mítico Superman, que segura na sua mão direita um precioso e pequeno globo terrestre. Sabem-na toda, estes americanos: religião + comics confundidos. Assim, só uma mente perversa poderá recordar a inesquecível visão do Hitler, em O Ditador do genial Chaplin, brincando displicente com o balão Terra. Maligna lembrança! Pois não se trata afinal do "domínio de um poder benigno", como esmagadoramente se argumenta páginas depois? Vade retro, Satanás! Este é benigno...

E para que se não diga que a Time é parcial, lá vem também a figura de um Uncle Sam que te aponta o dedo e ordena: "Eu quero que faças isto, e aquilo, e mais isto e aquilo..." O busilis neste caso é que a ilustração se insere num tenebroso artigo (pp.16-17) de um reputado especialista da celebrada revista Foreign Affairs, um tal Charles Krauthammer, com o imperativo título: "A América manda: Graças a Deus"! E de novo para que se não possa dizer que a Time só dá a voz aos "falcões", segue-se-lhe (pp.18-19) um outro especialista em política externa americana, James Chace, disfarçado de "pomba", para reconhecer debilidades e insuficências na afirmação dos EUA no mundo hoje, e receitar no fim que o que os dirigentes actuais precisam é de usar mais... "retórica" (sic).


Logo no começo da reportagem (p.11) se reconhece que "raramente a indignação com os Estados Unidos atingiu tão sinfónicas dimensões como ultimamente". É esse sentimento (cujo perigo não subestima) que se pretende minorar com esta peça "especial". A enorme equipa mobilizada actuou em duas direcções: um batalhão abordou a perspectiva dos EUA vistos do exterior; outro batalhão, a perspectiva do interior.

Quanto à primeira, o director da Time no seu editorial (p.4) tira a conclusão: hoje está "largamente espalhada uma visão da América como 'arrogante' no seu exercício do poder, mas também apreciada como leader indispensável de um mundo crescentemente perigoso e complexo". Claro, em toda a reportagem dá-se eco sobretudo aos círculos dominantes pelo mundo, mas silenciam-se totalmente as massas dos pura e simplesmente oprimidos. Daí a plausível conclusão.

Quanto à perspectiva caseira, após uma excursão de costa a costa pela célebre Highway 50, a conclusão do director da Time é: "Quando a economia está em expansão, os americanos estão menos polarizados". O subjectivismo é mais que gritante no segundo termo da conclusão, e tem evidentes pés de barro no primeiro termo. Todos os dados objectivos apontam a agudização da polarização e mesmo os dados estatísticos quanto à apregoada "expansão" não são convincentes, especialmente quanto à sua durabilidade.


Para terminar esta breve crónica, reporto-me sintèticamente à já de si sintética alusão feita, no final da peça (p.41), aos "exuberantes anos 20". Nessa década de expansão espantosa, o desemprego caiu de 12% para 3,2% (hoje mais alto), o crescimento económico fez-se a uma poderosa taxa de 3,6% ao ano (nos 90 à volta dos 2%), a inflação andou a menos de 1% (hoje, maior), o orçamento federal viveu com superavit (ainda hoje uma miragem). Por isso Hebert Hoover proclamou, em 1928: "Nós na América estamos mais perto do triunfo final sobre a pobreza do que nunca antes na história de qualquer país"... Mas a maravilha das maravilhas desabou, logo em 1929, no Krach da Bolsa e no inferno da Grande Depressão! E hoje, aonde leva a actual "exuberante irracionalidade" bolsista?...

Carlos Aboim Inglez