TELEVISÃO


Agosto das costas quentes

Por Correia da Fonseca


Começava Agosto, e logo no seu primeiro dia a RTP anunciou que «a maioria dos portugueses partiu para férias». A informação foi repetida em mais de um serviço noticioso, aparentemente em obediência à regra nunca escrita mas sempre seguida que manda repetir uma aldrabice até que ela passe por verdade óbvia. No dia seguinte, que era sábado, lá estava de novo a RTP a proclamar reiteradamente que «os alfacinhas saíram da cidade rumo ao sul». Voltava a ser mentira, é claro. Infelizmente, o que acontece é que entram Julho, Agosto, Setembro, e ao contrário do que pretende a RTP «a maioria dos portugueses» não parte para férias e os alfacinhas, coitados, quando muito vão ali à Costa da Caparica, arrastando-se no engarrafamento infernal da Ponte ou embarcando em Belém e tomando o autocarro na Trafaria. E isto, ainda assim, só para quem pode.

Um território sensível

Dir-se-á talvez que a RTP não fez por mal, e não serei eu quem sustente obstinadamente o contrário porque, como se sabe, isto de garantir que certas intrujices são adiantadas «por mal» é tarefa de consecução praticamente impossível. Além do mais, é possível alegar que a impostura de anunciar maiorias a partirem para férias até foi perpetrada «por bem», pelo generoso desejo de que fosse assim. Quanto a mim, porém, uma explicação destas pecaria por excesso de optimismo. Mais me inclino a crer que, por um lado, a RTP foi arrastada pela sua excessiva familiaridade com o hábito de mentir e, por outro, com o também habitual desejo de dar do País uma imagem retocada em tons cor-de-rosa. Neste caso, esqueceu-se de que ela própria tem divulgado dados que confirmam por via estatística aquilo que cada um de nós sabe pelo contacto directo com a realidade: que a maioria dos portugueses não tem condições para «partir para férias». Que, quando muito, lhe é permitido não ir ao emprego durante uns dias, o que é coisa diferente, como até na RTP se saberá.

No fundo, tenho o sentimento de que estou a ser severo de mais perante um exagero de retórica que terá sido, quando muito, uma mentirola equiparável à condição de pecado venial, dessas que não atiram uma alma para as profundas do inferno. A questão, porém, é que isto de ter ou não ter férias a sério, de partir ou não partir para elas, é mais grave do que pode parecer. Para um sujeito que passa o ano inteiro a esfalfar-se, a fazer «tanta força por pouco dinheiro» como cantou o Sérgio Godinho, as férias são imaginadas como um território da felicidade breve mas possível, e um sonho destes não é coisa com que se brinque ou acerca do qual se minta sem provocar uma feridinha dolorosa. E as férias, as que são ou as que deveriam ser, são contíguas a outras questões que de súbito podem revelar-se dramáticas. Terá a RTP dúvidas acerca disto? Se as tem, seria bom que as tirasse a limpo encomendando um desses inquéritos de que tanto gosta e divulgando os seus resultados no Telejornal. O tema seria simples: o que fazem os portugueses com o seu subsídio de férias (e aqui voltamos a uma ressalva importante: no caso de o receberem, ao subsídio de férias)? Sem que tenha feito investigações por conta própria e mesmo sem ter contrato com nenhuma empresa da especialidade, estou convencido de que parte substancial dos subsídios recebidos foram aplicados a pagar dívidas entretanto contraídas, a dar satisfação a necessidades acumuladas, a pagar impostos em atraso, a liquidar recibos de seguro ou outros cujo vencimento foi cuidadosamente marcado a contar com o subsídio a receber. Se estou enganado, peço antecipadamente desculpa. Se não estou enganado, são muitos milhares de portugueses que são credores de pedidos de desculpa. Tudo isto, e provavelmente muito mais, forma uma área sensível que, a julgar por mim, foi escalavrada por aquela eufórica versão que nos dava a quase todos, ou pelo menos à maioria, como tendo partido para férias presumivelmente regaladas.


Talvez uns seis por cento

Sei, naturalmente, que a culpa foi de Agosto, ele próprio um mês habitado por mitos e também, não poucas vezes, por enganos sem nenhuma nobreza mítica. Diz-se «Agosto» e chega um novelo de sugestões simpáticas como um bando de pássaros migrantes: noites cálidas, amores mornos e efémeros, adolescências saudosas, praias que se fingem cosmopolitas ou regressos episódicos às terras de origem, poentes que nunca olhamos quando estamos na cidade. Mas Agosto tem as costas quentes, e não apenas em sentido literal e em enquadramento geográfico. Assim, é por Agosto ter as costas quentes e não poder refilar que sobre ele as TV's, as portuguesas e as outras (mas das outras não cuido eu, até por saber que cada um sabe de si e cada qual tem as suas necessidades específicas), decretam que é mês em que pouca gente vê televisão e que, por isso, podem baixar ainda mais a qualidade já anã da programação que nos fornecem.

Para provarem a redução das audiências, as estações de TV exibem, é claro, as inevitáveis estatísticas. Lá está: segundo números que vi publicados, o número de telespectadores diminui em Agosto em cerca de 6%. Perante isto, não duvido, ora essa!, mas assaltam-me perplexidades. Então, por uma porcaria de 6% (com todo o respeito, é claro, como diria o dr. Manuel Monteiro), as TV's acham-se no direito de abandalhar ainda mais o produto que nos impingem? E entre os 94% subsistentes, não haverá muitos que, exactamente por não irem trabalhar, estão mais disponíveis e mais atentos para o consumo de televisão? E não estão por aí milhares de emigrantes, entre os quais muitos não serão exclusivos admiradores do Quim Barreiros e dos quais seria bonito servir uma TV asseada? E não seria em Agosto que urna televisão com qualidade poderia «conquistar» jovens estudantes que em férias podem enfim olhar o televisor a horas que nos outros meses lhes estão praticamente vedadas (parecendo certo que a praia, a discoteca e as (os) miúdas (os) não preenchem totalmente a disponibilidade de todos eles durante este mês)?

Posso, naturalmente, estar redondamente enganado em tudo isto, e podem provar-me que, de facto, em Agosto a população portuguesa está nas mais realíssimas tintas para a TV que lhe fornecem. Ainda assim, contudo, creio que me assistirá uma última razão: a de que às estações de TV, como a quaisquer outros fornecedores de bens ou serviços, incumbe o dever indeclinável de manter a qualidade do que lhes cumpre fornecer, e que nenhum pretexto vale para dar cobertura à mixordice. Neste caso, porque mesmo no resto do ano a TV que nos entra em casa se situa muito abaixo do que um presumível «serviço público» exigiria, no caso da RTP, e do que a elementar higiene mental reclama, noutros casos. Porque, mesmo nesta «Europa» fascinada por um processo de cretinização mundializada que aliás lhe está a cobrar os olhos da cara, o nosso país permanece uns bons dois palmos abaixo da média comunitária em matéria de cultura, esclarecimento, entendimento corrente do mundo em que se inscreve.

Pelo que, na verdade, começa a configurar-se como criminosa contra o interesse nacional a invocação abusava das costas quentes de Agosto.