EM FOCO


Camponeses brasileiros vão invadir cidades
para pregar a reforma agrária

Julgamento político condena
dirigente José Rainha a 26 anos de prisão


O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST) pretende avançar sobre os grandes centros urbanos, para ganhar as massas das cidades para a luta pela reforma agrária no país. A afirmação é de José Rainha Júnior, dirigente nacional do MST, organização de camponeses que luta pela mudança da estrutura fundiária brasileira e que é actualmente o mais importante acontecimento político e social do Brasil.
Segundo Rainha, a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998, será impedida nas ruas, por meio de um amplo movimento popular contra o modelo neoliberal adoptado pelo actual governo brasileiro, que exclui milhões de pessoas - o Brasil tem 40 milhões de pessoas que passam fome.
O dirigente do MST foi condenado dia 10 de Junho a 26,5 anos de prisão, acusado de participar no assassinato de um fazendeiro e de um policial militar durante um conflito pela terra ocorrido no município de Pedro Canário, Estado do Espírito Santo, no Sul do Brasil. Detalhe: no dia dos factos, ele estava a mais de 2000 Km de distância do local. «Foi um julgamento político», disse o dirigente do MST numa entrevista ao jornal Vorwärts, órgão do Partido do Trabalho Suíço. É essa entrevista, que gentilmente nos foi cedida, que hoje publicamos, numa manifestação de solidariedade com o Movimento dos Sem Terra.


O que é o Movimento dos Sem Terra (MST) do Brasil?

José Rainha - O MST é uma organização de camponeses pobres, sem terra, que nós identificamos como os assalariados, os bóia-frias, os trabalhadores arrendatários. Somando tudo, temos hoje dados que chegam a 4,5 milhões de famílias sem terra no Brasil. O MST nasceu há mais de 20 anos com o objectivo de organizar os trabalhadores para que voltassem à terra, pleiteando a bandeira da reforma agrária ou, melhor dito, a democratização da terra no país, com o objectivo de dar terra a esses trabalhadores, a fim de resolver o problema deles, que é o desemprego, diminuindo, amenizando, o êxodo rural. O MST busca resolver primeiro o problema do desemprego e da habitação, que é dar uma casa para o cidadão morar, condições para a criança estudar e, principalmente, dar comida a essas pessoas que passam fome. A maior parte dos sem terra são os milhares de trabalhadores que vivem sem condições nenhumas. Então o MST é isso: uma estrutura de camponeses autónoma de qualquer partido político ou de segmento religioso. Procuramos, dentro da nossa filosofia, defender a reforma agrária como forma de resolver as principais causas sociais do Brasil.


Como analisa a situação do campo brasileiro em que se dá a luta do MST?

J. R. - A situação é difícil. Nós temos a concentração de 182 milhões de hectares de terra improdutiva, temos 500 anos de poderio do latifúndio arrogante, do tempo do Brasil colónia, de mentalidade feudal - que nós chamamos no Brasil de coronéis da terra. Esses coronéis da terra são os mesmos que estão na política, em aliança com o governo que está aí identificado com António Carlos Magalhães, Marco Maciel (respectivamente, presidente do Senado e vice-presidente da República, ambos crias da ditadura militar brasileira da qual foram estreitos colaboradores) e outros latifundiários. O latifúndio brasileiro é violento por natureza e tem duas formas de repressão: uma é assassinar selectivamente, como no caso de Margarida Alves, de Chico Mendes, de Padre Josina (militantes da reforma agrária assassinados em diferentes regiões do Brasil); a outra forma é o Poder Judiciário, que prende arbitrariamente os trabalhadores e faz condenações como essa última recente de Pedro Canário. São formas de tentar inibir, impedir a luta por melhoria de vida dos trabalhadores. Então, o latifundiário é muito articulado com o Poder Judiciário, está acima da lei. Os juizes do interior são os fazendeiros.

Neste contexto, como você define o julgamento em Pedro Canário, no Estado de Espírito Santo, no sul do Brasil, que resultou na sua condenação a 26,5 anos de prisão?

J. R. - Foi um julgamento absurdo, uma condenação política. A primeira condenação numa democracia. Isso é uma humilhação para o Brasil, que se veste de democracia, e deve envergonhar no exterior, quando se vê que o único crime que eu cometi ou que o MST cometeu foi lutar pela terra, foi buscar emprego para os trabalhadores e comida para resolver o problema da fome. A acusação de crime é um absurdo. Fazia um ano que estava fora daquele Estado e o conflito que aconteceu em 1989 nada tem a ver com o MST e muito menos com a liderança do Movimento. São conflitos que acontecem periodicamente no Brasil, em que milhares de camponeses são mortos como nos Estados do Pará, Acre e Rondónia. Agora, é lógico: como sou capixaba (nascido no Espírito Santo) e liderança naquele Estado, tinham que arrumar alguém para condenar. Então, foi uma armação política para condenar a liderança do MST, para dizer que o MST é violento e que quem ousa enfrentar o latifúndio tem que pegar cadeia. E uma aliança muito bem feita do Poder Judiciário com o latifundiário. Essa foi a condenação que sofri.


Você provou no processo de julgamento que estava a mais de 2000 Km de distância de Pedro Canário no dia dos factos julgados e assim mesmo foi condenado?

J. R. - Fazia um ano que eu tinha saído do Estado do Espírito Santo e não havia prova nenhuma contra mim, a acusação não tinha nenhuma testemunha, não tinha nada. Por isso, a acusação foi política. A composição do corpo de jurados do Espírito Santo é terrível, o júri que me condenou era composto por fazendeiros e gente reaccionária ligada à UDR (União Democrática Ruralista, organização ultraconservadora dos latifundiários brasileiros). Temos dito que, com aquele júri, nem Jesus Cristo faria milagre.


Haverá um novo julgamento do seu caso em Pedro Canário, dia 16 de Setembro. Como acha que pode reverter sua condenação?

J. R. - Estamos tentando desaforamento, deslocando o júri de Pedro Canário para Florianópolis (capital do Estado de Espírito Santo). Mas isso é um pouco difícil. A Justiça não está muito interessada na transferência do julgamento daquele município. Nós estamos acreditando na mobilizarão popular no Brasil, no apoio internacional das entidades de direitos humanos em solidariedade ao MST nessa causa. Esta é a forma de revertermos a condenação, para que o exterior também possa saber o que está acontecendo e tenha uma posição de repúdio contra as injustiças que estão cometendo contra os trabalhadores que lutam pelos direitos humanos no Brasil.


Foi nesse contexto adverso para os camponeses no Brasil que a sua esposa Deolinda Alves de Souza também foi presa?

J. R. - Sim. Deolinda foi presa de forma absurda na região Pontal do Paranapanema, numa acusação de formação de quadrilha, imagine! Isso não existe. Foi presa dentro de casa, sequer estava em ocupação de terra. Mas naquele momento era preciso tentar inibir o avanço do Movimento com as prisões. È uma articulação muito forte do latifúndio brasileiro, que tem uma mentalidade neo-fascista.


Você também não acha que é uma incongruência o facto de Deolinda ter sido presa
na Penitenciária do Carandiru em São Paulo, que é o maior complexo presidiário da América Latina, e alguns meses depois receber o título de Cidadã Paulistana outorgado pela Câmara Municipal?

J. R. - O título de Cidadã Paulistana a Deolinda foi o reconhecimento da sociedade. Enquanto meia dúzia de latifundiários atrasados e um Poder Judiciário cúmplice fazem um atentado contra a vida, contra a liderança do MST, tentando colocar-nos como marginais, temos a resposta da sociedade. O título de cidadã de São Paulo, que é a maior cidade do Brasil e a quarta maior do mundo, nos engrandece, nos encoraja, nos respalda na luta do MST, que é justa, digna. Esse título representa o crescimento, o avanço e o respeito que o MST tem na sociedade contra meia dúzia de latifundiários. O governo federal deveria enxergar isso, mas infelizmente ele tem uma aliança muito complicada que impede tomar algumas medidas para acabar com o latifúndio e com a violência desencadeado contra os trabalhadores.


Como vê o projecto neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso?

J. R. - O projecto neoliberal do governo federal está falido, não resolve os problemas sociais do Brasil, nem da América Latina. Aí estão os problemas sociais na Argentina, a falência no México onde este projecto foi empregado, para citar só dois exemplos. Esta nova fase do imperialismo para a América Latina vai excluir os milhões de trabalhadores com desemprego e miséria. São 40 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, são milhões de crianças na rua. Eu pergunto: para onde vai esse povo, para onde vão os excluídos? Para a Europa, somar nas filas de miseráveis? Lá eles não nos querem. O neoliberalismo é um sistema excludente, que beneficia só os banqueiros e os grandes empresários. O povo brasileiro vai reagir contra o neoliberalismo. Pode ter certeza disso.


Existe uma estratégia dos trabalhadores contra o neoliberalismo a nível nacional ou continental?

J. R. - Existe. O MST tem buscado, na luta pela terra, somar com as categorias urbanas, os partidos progressistas e de esquerda, numa ofensiva articulada para impedir esse projecto. No Brasil, temos que impedir a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, tentar eleger alguém comprometido com os ideais nacionalistas, que possa retomar o direito dos brasileiros de resolver seus problemas básicos. Ao nível da América Latina, tomando a ofensiva contra essa investida imperialista no Continente. Estamos buscando alianças e articulações nesse sentido. E acreditamos que a luta do povo na rua pode reverter esse processo.


Qual a postura do governo Fernando Henrique Cardoso em relação ao MST?

J. R. - Fernando Henrique Cardoso diz uma coisa nos bastidores e outra para o público. Ele é um governo de marketing que quer se reeleger. Mas tem um compromisso muito grande com essa elite de direita no Brasil e seu projecto neoliberal. Fernando Henrique Cardoso está perdendo o que ele tinha na história. Ele tinha um compromisso, uma responsabilidade. Se você vir o que o Fernando Henrique dizia em 1984 e o que ele diz hoje, é totalmente contraditório. Ele não tem compromisso com a classe trabalhadora, nem com a causa social. Está falando para um Brasil no qual parece que ele não vive, não conhece.


Como impedir a reeleição de Fernando Henrique Cardoso?

J. R. - Com o povo na rua. É possível criar um movimento de massa forte, como em 1984 (manifestações pelas eleições directas para presidente da República), 1989 (campanha de Lula à presidência) e 1992 (mobilização nacional que resultou, no impeachment de Collor de Mello). Se o povo não vier para as ruas, não fizer suas grandes mobilizações, seus grandes protestos, dificilmente vamos reverter o quadro. Mas o povo é capaz de mudar, de construir uma história nova para o Brasil. E possível derrotar a reeleição de Fernando Henrique Cardoso nas ruas, eu acredito na mobilização do povo e o MST vai lutar por isso.


O que espera o MST do exterior?

J. R. - A mensagem que o MST manda para o exterior, especialmente para a Europa, é a seguinte: é preciso olhar para o Brasil com mais carinho, não com pena da miséria de milhões de pessoas, dos indígenas ou do problema ecológico. É preciso fazer alguma coisa. A Amazónia é o pulmão do mundo e quem está destruindo a Amazónia hoje são os norte-americanos, o capital internacional, que não preserva o meio ambiente. É preciso um gesto de solidariedade, algo concreto. Porque se o Brasil resolver o problema da fome, da miséria, do desemprego, vai ser bom para a Suíça, para a Europa e para o mundo. Quanto mais gente passando fome, quando mais miseráveis aqui, pior para os outros países. Então, minha mensagem é que se faça alguma coisa concreta em vez de só discutir. Tudo que queremos é justiça, dignidade, fraternidade, um Brasil feliz, um Brasil melhor.


Para encerrar: para onde vai, para onde caminha o MST?

J. R. - O Movimento caminha para o sector urbano. Precisamos conquistar a reforma agrária. É hora de sair da roça, do campo, das meras ocupações para vir para as manifestações urbanas. É preciso convencer os operários e a classe média no Brasil para que entrem na luta pela reforma agrária, que pressupõe no Brasil uma mudança na estrutura económica e de poder, com uma política agrícola voltada para toda a sociedade, democratizando-se a propriedade da terra. Acreditamos que a reforma agrária será feita com a sociedade. O MST virá para os centros urbanos, para as capitais, buscar apoio no seio da sociedade para que o governo realmente pare de falar de reforma agrária e a faça concretamente, democratizando a propriedade da terra no Brasil.


 

Deolinda Alves de Souza:
De presidiária do Carandiru a Cidadã Paulistana


Coisas da vida política brasileira: Deolinda Alves de Souza, mulher de José Rainha e também militante do MST, foi presa na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, o maior e mais perigoso complexo presidiário da América Latina, e alguns meses depois, no dia 23 de Junho último, recebeu o titulo de Cidadã Paulistana, outorgado pela Câmara Municipal de São Paulo.
«Esta homenagem é um desagravo às suas prisões e à injusta condenação de seu marido, José Rainha, e o reconhecimento da legitimidade do MST», resumiu a vereadora paulistana Aldaiza Sposati (PT), autora do projecto que atribuiu o titulo a Diolinda.

A trajectória de Deolinda, mineira de 27 anos, é de luta e compromisso com os trabalhadores rurais sem terra. Foi nessa militância que conheceu José Rainha, com quem construiu uma identidade de companheirismo e amor pela vida e pela justiça social. Foi presa em Outubro de 1995 e em Janeiro de 1996 - um mês depois, começou uma greve de fome contra as más condições do presídio. Foi solta na noite de 12 de Março. «Foi uma experiência, uma lição de vida. Sem dúvida nenhuma essa experiência não se apagará, e meu filho (João Paulo de Souza Rainha, actualmente com quatro anos de idade) vai poder contar para os meus netos e dizer como foi importante nossa luta por um Brasil mais justo. Ocupação de terra para nós é questão de honra e esperança», declarou à imprensa ao deixar o presídio.
«Jamais passou pela minha cabeça receber uma homenagem como esta pela maior cidade do meu país. Assim, gostaria muito que através da minha pessoa estivessem sendo homenageados aqui também os pequenos proprietários rurais do Brasil», disse Deolinda, ao receber o título de Cidadã Paulistana.

Ela denunciou que mais de 400 mil pequenos proprietários rurais foram à falência nos últimos dois anos, em consequência da política do presidente Fernando Henrique Cardoso de adequar a economia brasileira à globalização. Mais do que a fria estatística oficial, essas cifras encerram o drama de 400 mil famílias que tiveram o seu sonho de uma vida melhor sepultado. «Nossa sociedade está nos empurrando para engrossar as favelas dos grandes centros urbanos, viver em condições subumanas e conviver com tráfico, com a prostituição e com a criminalidade. E quando organizamos esse contingente para lutar pelo seu direito de moradia, escola, saúde e de permanecer no campo, o governo pede-nos calma, paciência, tempo. É estranho. O governo em dois anos expulsa 400 mil famílias do campo e diz que em quatro anos de seu governo, só será possível assentar 480 mil famílias em áreas de reforma agrária. E pede-nos paciência, revolta-se Deolinda.
«Mas não há frio, calor, nem fome, nem feriado, que impeça os militantes do MST de organizar os trabalhadores. O sonho de uma sociedade justa é o nosso combustível e por ela continuaremos lutando sem tréguas.»

R. M.