EM FOCO


A propósito do trabalho de estrangeiros

Legalizar ou discriminar?


Por
António Filipe


Encontram-se para discussão na Assembleia da República três iniciativas legislativas destinadas a regular o trabalho de cidadãos estrangeiros em território português, originárias do Governo, do PCP e do PEV. Com uma enorme diferença. Enquanto os projectos do PCP e do PEV propõem a eliminação das discriminações que afectam os trabalhadores imigrantes ao nível da contratação, a proposta do Governo aponta para a instrumentalização da legislação laboral com objectivos policiais, acentuando a discriminação destes trabalhadores.


A primeira questão que está em causa diz respeito à revogação de um Decreto-lei de 1977 que regulamentou o trabalho de estrangeiros em território nacional, estabelecendo que as entidades patronais, nacionais ou estrangeiras, que exerçam a sua actividade em qualquer parte do território português só podem ter ao seu serviço trabalhadores de nacionalidade estrangeira, no caso do seu quadro de pessoal, quando composto por mais de cinco trabalhadores, estar preenchido pelo menos por 90% de trabalhadores portugueses. Assim, para além de contrariar o princípio da igualdade entre nacionais e estrangeiros consagrado na Constituição, este diploma representa um incentivo objectivo ao trabalho clandestino por parte de cidadãos estrangeiros e põe em causa o direito ao trabalho dos imigrantes residentes em Portugal, contribuindo para a criação de situações indesejáveis de marginalização social e de negação de direitos laborais.

Acontece ainda que, a pretexto de permitir a fiscalização por via administrativa do cumprimento da proibição de contratar trabalhadores estrangeiros para além do limite dos 10%, o Decreto-Lei n.º 97/77 introduziu um sistema de registo e de comunicação ao SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) dos contratos de trabalho celebrados com estrangeiros, que veio criar uma promiscuidade indesejável entre a regulamentação das relações de trabalho e a repressão policial da imigração ilegal.

Daí que o PCP proponha a revogação integral do DL 97/77. Trata-se em primeiro lugar, de eliminar o sistema inconstitucional de quotas de contratação, garantindo aos trabalhadores estrangeiros residentes em Portugal o acesso ao emprego em condições de igualdade. E trata-se também, consequentemente, de eliminar os mecanismos de fiscalização policial destinados a garantir o cumprimento desse sistema.


As razões do PCP

O PCP, ao defender a adequada inserção social dos imigrantes que residem e trabalham em Portugal, defende também a legalidade das suas relações de trabalho. O Decreto-Lei n.º 97/77, não tendo em conta a realidade de diversos sectores económicos que recorrem a um número muito elevado de trabalhadores imigrantes (de que a construção civil será porventura o exemplo mais significativo), constitui um poderoso incentivo ao trabalho clandestino. A situação de ilegalidade a que muitos trabalhadores se vêem obrigados por força deste diploma força-os a aceitar condições de trabalho sem a garantia de quaisquer direitos ou de qualquer protecção social e faz com que seja este o tipo de mão-de-obra preferido pelo patronato com menos escrúpulos, prejudicando inclusivamente a contratação de trabalhadores nacionais.

Ao defender condições de igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, no acesso ao emprego, nas remunerações, nos direitos e regalias sociais, o PCP tem como objectivo combater o trabalho clandestino. Só assim será possível assegurar o direito de todos ao emprego e à prestação de trabalho em condições socialmente dignificantes.

Não se põe em causa a existência de regimes legais de condicionamento do acesso de estrangeiros a determinadas funções, nos termos em que a Constituição o consente. O que está em causa, por ser inaceitável e inconstitucional, é a imposição de um regime geral de condicionamento do acesso de estrangeiros a toda e qualquer actividade profissional.

No entanto, esta iniciativa é também fundamentada em outras ordens de razões, que dizem respeito à posição de Portugal no mundo. Não é aceitável que sendo Portugal historicamente um país de emigração, vivendo cerca de 4,7 milhões dos nossos compatriotas além fronteiras, para quem exigimos condições de não discriminação no acesso ao trabalho em relação aos nacionais dos países onde vivem, sejamos nós, em Portugal, a impor aos estrangeiros residentes no nosso território um regime discriminatório de acesso ao emprego. Portugal não pode impor aos estrangeiros que cá residem um regime de acesso ao emprego que não aceitaríamos se fosse imposto aos portugueses que residem no estrangeiro.

Acresce ainda que a esmagadora maioria dos cidadãos estrangeiros residentes em Portugal é originária de países da CPLP. Sendo um imperativo nacional privilegiar a amizade e a cooperação com estes povos, não é aceitável que este imperativo fique pelos discursos e que no tocante a relações de trabalho, os cidadãos de países da CPLP se vejam forçados a recorrer ao trabalho clandestino e sem direitos.


A proposta inaceitável do Governo

Acontece porém que a Proposta de Lei apresentada pelo Governo PS, embora também proponha a revogação do Decreto-Lei n.º 97/77, contém outras disposições que são fortemente lesivas do estatuto dos cidadãos estrangeiros, e que a serem aprovadas, conduziriam à manutenção e mesmo ao agravamento de situações inaceitáveis de discriminação. Em traços gerais, a Proposta de Lei do Governo suscita quatro críticas fundamentais:

Em primeiro lugar, consagra, no acesso ao emprego, a existência de cidadãos estrangeiros de primeira, de segunda e de terceira. Assim, a Proposta do Governo contém regimes de tratamento diversos, conforme os tipos de cidadãos. Há um regime igual aos nacionais para os cidadãos originários de países do espaço económico europeu. Há um regime para cidadãos de países com os quais existam acordos que consagrem a igualdade de tratamento com os nacionais em matéria de livre exercício de actividades profissionais. E há ainda um outro regime, fortemente discriminatório, aplicável aos demais cidadãos estrangeiros.

Em segundo lugar, o Governo pretende manter, e em alguns aspectos acentuar, medidas de carácter policial contra estrangeiros, a pretexto da prestação de trabalho. Assim, cada entidade patronal terá de enviar anualmente ao SEF uma relação circunstanciada de todos os cidadãos estrangeiros ao seu serviço. Todos os contratos com cidadãos que não sejam originários do espaço económico europeu têm de ser comunicados ao IDICT ( vulgo, inspecção do trabalho ) até ao início da actividade profissional. E nos casos de contratos com trabalhadores de outros países, a entidade patronal deve promover previamente o registo de cada contrato no IDICT, pagando dois mil escudos; sendo que esse registo é recusável se se verificar que o contrato de trabalho tem objecto ou fim diferente do que determinou a autorização de entrada e permanência em Portugal. Registado o contrato, é ainda enviado um exemplar ao SEF.

Em terceiro lugar, como bem se vê, todo este regime dificulta sobremaneira o acesso dos cidadãos estrangeiros ao exercício de uma actividade profissional, mantendo e agravando mesmo as condições de discriminação no acesso ao emprego.

Em quatro lugar, esta Proposta de Lei é estigmatizadora dos cidadãos de outros países ao pretender associar o trabalho de estrangeiros ao trabalho clandestino, quando se sabe que o fenómeno do trabalho ilegal em Portugal está muito longe de se restringir aos trabalhadores estrangeiros, afectando um número largamente superior de trabalhadores nacionais.

Perguntar-se-á, com inteiro cabimento, como é que se compreende que o Governo proponha a extinção do regime de quotas de contratação, eliminando os limites de contratação de trabalhadores estrangeiros e pretenda ao mesmo tempo, manter o sistema de fiscalização policial que existia para o fazer cumprir, ainda mais agravado. Este facto, parecendo absurdo, tem o mérito de tornar claros os objectivos do Governo. É que os mecanismos de fiscalização instituídos não se destinam a fazer cumprir a legalidade das relações de trabalho, mas são acima de tudo uma instrumentalização do direito laboral para efeitos de repressão policial de estrangeiros em situação ilegal. É essa promiscuidade que o Governo pretende, não apenas manter, mas agravar, tanto mais que se anunciam já novas e graves alterações da legislação de acesso e permanência de estrangeiros em Portugal.

Como bem sintetiza um recente comunicado do Grupo de Trabalho do PCP para as questões da imigração e das minorias étnicas, a proposta de lei do Governo continua a discriminar os trabalhadores imigrantes em Portugal, confunde perversamente a regulação das relações de trabalho com o combate à imigração ilegal, e favorece na prática o recurso ao trabalho clandestino que diz combater, ao dificultar a legalização do trabalho dos imigrantes.