TELEVISÃO


Com a verdade me enganas

Por Correia da Fonseca


Haverá decerto quem se aplique a inventariar as diferenças entre Carlos Cruz a apresentar «TV Verdade» e Artur Albarran a apresentar «Imagens reais». Há-as, sem dúvida, mas não é investigação que me fascine, muito antes pelo contrário. Como a toda a gente, ou quase, desapontou-me que Carlos Cruz condescendesse em vender aquilo, mas essa é outra questão.

Quanto a Albarran, não me desapontou nada porque nunca foi homem que me suscitasse expectativas positivas. Não porque não fosse capaz disso se o quisesse, mas porque não quer, porque são outras as suas opções. E talvez seja relativamente importante sublinhar isto, assim tentando desmentir a convicção muito generalizada de que Artur Albarran é pateta de todo e nada mais. Não é, não senhores. Se isto constitui atenuante ou agravante, outros que o avaliem. Por mim, o que tento avaliar, isso sim, é a informação tácita que subjaz em rubricas com estas duas e que se explícita numa frase de Carlos Cruz, proferida com aquela cara de mau que ele põe para reforçar o impacto possível do programa que apresenta: «Há várias formas de fazer televisão; esta é a verdadeira TV!»


Se calhar, é a isto que deve chamar-se um pensamento fecundo: se aquela é que é a verdadeira
TV, pode inferir-se que todo o resto é a TV falsa, aldrabona, impostora, como se lhe quiser chamar. Neste sentido, parece-me uma sentença excessivamente severa, mas a culpa não é minha, é do Carlos Cruz, que aliás tem currículo mais que bastante para saber do que fala. Se aquela é que é a TV verdadeira, é mentirosa a TV do Telejornal, da generalidade das séries norte-americanas, dos entrevistadores visivelmente açulados contra certos entrevistados. Sou muito capaz de concordar. Porém, a TV portuguesa ainda não está reduzida apenas a isso, apesar dos esforços feitos nesse sentido. Se estou enganado, peço desculpa.


Com as calças do pai

Voltemos, porém, às peremptórias palavras de Carlos Cruz e à rubrica por ele apresentada (ou à sua irmãzinha e rival, as «Imagens reais», do ArturAlbarran). A julgar por elas, o que é a verdadeira TV? Será a que nos traz a casa imagens colhidas na realidade sem retoque e que, por isso mesmo, são reveladoras da verdade da vida vivida? Vai-se a ver, o que é que está dentro desse universo revelador? Está um motociclista que amavelmente se espatifa contra um autocarro diante de uma câmara vigilante, está um gato que liga o telefone para o I15 local, está um sujeito que rouba um autocarro e percorre quilómetros a esmagar quanto se lhe depara no caminho, está um homem prestes a morrer num lago gelado, está um B-52 a despenhar-se e a provocar estragos condizentes com o acidente, está uma criança a salvar-se in extremis de um incêndio pavoroso. São coisas destas, senão menos significativas (género seios hipertrofiados e curiosidades similares), que constituam a «verdade» que pelos vistos mais importa revelar em «imagens reais». Divulgá-las será, entre as «várias formas de fazer televisão», a mais séria, mais verdadeira, mais nobre.

Poderá pensar-se, é claro, que se está apenas perante umas piruetas de verão destinadas a atrair gente, isto é, audiências, e que a prova disso é que tanto «TV Verdade» como «Imagens reais» logo se situaram entre os top's de audiência, o que prova a eficácia do recurso. Assim será: é sabido que a exibição pública de aleijões e chagas sempre suscitou a afluência de mirones e foi comercializada desde tempos imemoriais. Neste caso, porém, há uma implícita mensagem complementar que, discretamente embora, tem a ver com o entendimento global do mundo e da vida: a de que o autêntico que foge à rotina e que eventualmente a desmente. Não direi que se trata de uma inversão de valores, o que não pareceria adequado, mas que é uma mistificação. E passo apressadamente por cima do pormenor, porventura decisivo, de quer a rubrica de Cruz quer a de Albarran se tornarem êxitos de audiências quando transmitidas em horário colado às telenovelas e noticiários. Faz lembrar um velho ditado: com as calças do meu pai sou eu um homem.


Os receios

O motociclista pode ter chocado contra o autocarro em S. Paulo ou em S. Francisco, o gato telechamador de ambulâncias pode estar em Nova Orleans ou na Baía de Todos os Santos. Contudo, a verdade norte-americana ou brasileira não pode ser sequer indiciada pelos episódios narrados por Carlos Cruz ou por Albarran. O mesmo se aplica à generalidade das micro-reportagens dramáticas ou simplesmente patuscas que preenchem as rubricas de um e de outro. Mostre-se-nos um dos milhões de desempregados norte-americanos ou um dos miseráveis negros sem-abrigo que se arrastam na noite nova-iorquina e aí, sim, está uma das faces dos Estados Unidos, tal como o rosto brasileiro está na delinquência que desce dos morros ou na obstinada coragem de um nordestino que sonha com terra. Já seria bastante mau, pois, que as minúsculas e avulsas verdadezinhas cujo consumo Carlos Cruz nos propõe viessem ocupar um lugar excessivo no imaginário quadro que cada um de nós faz de uma cidade, de um país, do mundo. Porém, as coisas são piores. Ao dizer-nos que aquela é que é «a verdadeira TV», Carlos Cruz não apenas descredibiliza a restante televisão que já existe, o que noutros termos e noutro contexto até poderia aceitar-se, como antecipadamente desacredita uma outra TV que talvez não exista ainda mas há-de existir um dia. Porque é necessária. Porque essa será, enfim, a desde sempre invocada mas sempre adiada ou iludida «janela para o mundo». Enfim, a autêntica TV Verdade e não um tosco simulacro dela.

É claro que essas migalhas de realidade, cuidadosamente escolhidas em função do seu carácter excepcional, constituem uma poalha que nos é atirada para os olhos e tende a distrair-nos de uma outra realidade, permanente e compacta, em que é imperativo atentar e é urgente transformar. Temos, assim, que estas «TV Verdade», sem que em rigor o deixem de ser, são de facto manobras de diversão, pistas falsas, ludíbrios. Poderá alguém vir lembrar, e com razão, que esse é o perfil de toda a TV que se vai fazendo nos quatro cantos destas sociedades que escolheram a televisão como instrumento de anestesia, não de consciência desperta, enquanto sinistros cirurgiões vão operando sobre o corpo adormecido. É certo. Mas poucas vezes a manobra surgiu em estado tão «puro» e se autoproclamou exemplar em detrimento de todo o resto. Receio que não tenha acontecido apenas por acaso, se bem que circunstâncias diversas e factores de oportunidade tenham convergido nesse sentido. Receio que alguns, porventura muitos, tenham considerado que a capacidade de reflexão do público tenha chegado tão perto do grau zero que viabiliza enfim uma tão crua desfaçatez.

Receio, acima de tudo, que, de um modo geral, tenham razão.