EDITORIAL


Barro à parede


Ao anunciar um referencial de 2,6% para os aumentos salariais do próximo ano, o Governo atira o barro à parede a ver se pega e desencoraja a luta dos trabalhadores, mas explicita, em qualquer caso, a intenção de prosseguir a política de contenção e mesmo de redução dos salários reais.

O Governo continua a apostar na degradação salarial. Tal é a conclusão que se pode retirar da fuga organizada pelo Ministério das Finanças e que deu origem à «manchete» do Diário de Notícias da passada segunda feira.

«Salários só aumentam 2,6 %. O ponto de partida para o próximo ano está fixado. Sousa Franco nem quer ouvir falar nos três por cento» - titulava o jornal.

Os meios sindicais reagiram de pronto contra esta tentativa de condicionar e rebaixar desde já as expectativas dos trabalhadores nas negociações que vão seguir-se.

A manobra não é nova e foi largamente usada pelos governos de Cavaco Silva e pelo próprio governo PS o ano passado. Como salientou a CGTP: «o processo foi sempre o de criar um «tecto salarial psicológico» para depois influenciar a negociação colectiva e os processos de concertação social.»

Ao anunciar um referencial de 2,6% para os aumentos salariais do próximo ano, o Governo atira o barro à parede a ver se pega e desencoraja a luta dos trabalhadores, mas explicita, em qualquer caso, a intenção de prosseguir a política de contenção e mesmo de redução dos salários reais.

O Ministério da Finanças não curou, é claro, ao organizar a fuga de referir minimamente o quadro económico em que se insere semelhante proposta salarial nem quanto aos ganhos de produtividade, nem em relação ao peso relativo dos salários e à sua evolução, nem quanto às consequências da carga fiscal que recai sobretudo nos rendimentos do trabalho.

A obsessão do cumprimento do critério de Maastricht quanto à inflação é o grande argumento em que o Governo estriba, como habitualmente, a defesa do seu referencial. Mas já se percebe pelo texto do «DN» que um outro argumento será usado também: a perspectiva de «uma ligeira desaceleração da actividade económica» no próximo ano.

Quer dizer, o Governo que tem exaltado as suas proezas em matéria de crescimento económico, recusando todas as reservas das oposições, agora que se trata de definir a política salarial para o próximo é que se prepara para chorar as más perspectivas económicas e pretender que sejam os trabalhadores a pagar mais uma vez as consequências.


O número avançado pelo Governo como referencial de aumento de salários «é de todo em todo inaceitável», afirmou Carlos Luís Figueiras, da Comissão Política do PCP, em declaração ao «DN», salientando mais à frente: «em domínios como o da alimentação, educação e saúde, em especial no que toca aos medicamentos, o aumento de preços é bastante superior».

Além disso, como é sabido, os salários em Portugal são dos mais baixos da União Europeia, não têm acompanhado o crescimento da produtividade, são os mais sobrecarregados de impostos, traduzindo-se tudo isto numa repartição do rendimento nacional cada vez mais injusta.

No interesse do próprio desenvolvimento do país esta situação tem que ser radicalmente alterada.

Com toda a oportunidade a CGTP-IN sustentou, na conferência de imprensa, do passado dia 18, que «os aumentos de salários devem obedecer aos seguintes critérios: aumento do custo de vida, aumento da produtividade; melhoria da distribuição do rendimento nacional a favor dos salários; aproximação dos salários portugueses aos salários da Comunidade.»

O Coordenador da Central, em entrevista dada ao «Jornal de Notícias», no princípio do mês, afirmou: «Em Setembro estaremos aí em força e com novos ingredientes.»

É imperioso de facto que esta nova ofensiva do Governo no terreno salarial encontre pela frente uma resposta muito pronta, muito maciça e muito enérgica por parte dos trabalhadores.

Esta resposta é tanto mais essencial quanto é certo que além da magna matéria dos salários muitas outras da maior importância estão também colocadas aos trabalhadores na retomada do ano político e que vão desde as que se relaciona com os desenvolvimentos da revisão da Constituição até às questões do horário de trabalho e ao cumprimento das 40 horas, passando pelo regime de trabalho da função pública, o trabalho a tempo parcial, os debates em torno da segurança social e as alterações ao sistema nacional de saúde.


Entretanto, o Governo vai organizando outras fugas sobre a elaboração do Orçamento para 1998, todas elas visando preparar os espíritos para «os sacrifícios exigidos pela moeda única». É o caso, por exemplo, da notícia do «Expresso», do passado sábado, anunciando drásticos cortes no investimento público para próximo ano, que, segundo aquele semanário, poderia baixar entre 30 e 50 por cento. É evidente que cortes destas natureza se se vierem a verificar terão as mais negativas consequências na economia do país e em consequência na sua situação social.

A grande preocupação do Governo em matéria orçamental continua a ser a votação do próprio Orçamento que ocorre em plena campanha eleitoral autárquica, devendo a aprovação estar concluída antes da data das eleições.

O primeiro-ministro teme visivelmente uma rasteira da parte de Marcelo Rebelo de Sousa e teme não dispor na altura de outro parceiro para fazer passar o Orçamento. No discurso que fez aos deputados do PS antes de partir para férias, Guterres insistiu por diversas vezes na «perfídia do PSD» e agitou ainda a ameaça das eleições antecipadas para tentar uma nova negociata entre os dois partidos: o PSD viabiliza o Orçamento nas votações na generalidade, especialidade e final global e o Governo PS não aumenta os impostos em relação a 1997.

É de registar que o primeiro-ministro reconheça por esta forma que a política dos dois partidos é tão semelhante que admite ser suficiente um entendimento sobre o aumento dos impostos para que o PSD possa comprometer-se a aprovar o Orçamento não conhecendo mais nada sobre ele.

As preocupações do Governo foram retomadas pelo ministro António Vitorino ao insistir, em discurso do passado domingo, que a estabilidade «exige que o PSD garanta o Orçamento».

Tudo indica então que vamos ter então novos capítulos da telenovela dos arrufos, dos despiques e dos ataques entre PS e PSD para, é quase certo, acabarem nos braços um do outro num grande acordo, pois, o que está em causa entre eles não são os problemas do povo e do país, mas a mera disputa do poder para a execução de uma política, que é essencialmente a mesma.