EM FOCO


Da Rússia de ruínas e esperança
a Cuba como pátria do homem


Henry Alleg
em entrevista concedida a Miguel Urbano Rodrigues



Henri Alleg, escritor e jornalista francês bem conhecido do público português pelos seus livros sobre os EUA e a China, acaba de publicar em Paris, após uma visita à Rússia, mais uma obra polémica: «O Grande Salto para Trás - reportagem numa Rússia de ruínas e esperança»,
cuja tradução portuguesa a Editorial «Avante!» se prepara para lançar em Outubro (').

Ex-director do diário «Alger Republicain» e ex-secretário de Redacção de L'Humanité, Aleg é também autor de uma obra hoje clássica sobre a tortura, «La Question», de uma história monumental da Revolução Argelina e de um livro sobre a Revolução Cubana.

Publicamos, a seguir, a entrevista que esse militante e intelectual comunista, testemunha de grandes acontecimentos do nosso tempo, concedeu a Miguel Urbano Rodrigues.


MUR - Acaba de publicar um livro intitulado «O grande salto para trás», no qual alguns problemas da Rússia actual são tratados sob uma perspectiva muito diferente da que é comum no Ocidente. Quem são e que fazem os milhões de comunistas que eram membros do PCUS? Em que diferem os actuais comunistas dos antigos? Qual é no momento a estratégia do Partido Comunista da Federação Russa?

Henri Alleg - Uma das minhas primeiras preocupações, ao escrever este livro, era mostrar que, contrariamente à ideia hoje cultivada pela maior parte dos media, não chegámos «ao fim da história» com o desmoronamento da URSS e que o sistema capitalista, apesar da sua aparente solidez, não é eterno. Não obstante o ruir da União Soviética (cujas causas, consequências e lições apenas começam a ser estudadas), a actividade intensa dos comunistas que prossegue na Rússia, o lugar que ocupam na vida política do país (com mais de 40% dos votos nas eleições presidenciais e uma esmagadora maioria de deputados na Duma) seriam provas suficientes, se tal fosse necessário, para demonstrar que, ao contrário do que alguns se apressaram a anunciar, «o comunismo não morreu». Nem na Rússia nem fora dela.

É preciso, contudo, assinalar a enorme diminuição do número de filiados nas organizações comunistas russas (como sabe existem vários partidos) relativamente aos efectivos do antigo PCUS. Este, só na Rússia, tinha antes 10 milhões de membros. Presentemente, o partido mais importante, o Partido Comunista da Federação Russa - PCFR representa por si só mais de quatro quintos dos militantes e conta com cerca de 500 mil membros. De cada 20 militantes recuperou apenas um. Isso não significa que 19 em cada 20 dos antigos não eram autênticos militantes, mas revela em todo o caso que a proporção dos oportunistas e carreiristas era importante.

Hoje, o PCFR esforça-se por reagrupar os verdadeiros comunistas e reconstituir um partido sólido e renovado que saiba levar em conta as lições do passado. Bate-se simultaneamente para impedir a liquidação, pelos leltsin e camarilha, de todas as conquistas do socialismo, para reunir novamente as Repúblicas que formavam a União Soviética e para criar uma ampla frente patriótica contra o imperialismo estrangeiro, o qual, com a cumplicidade de diferentes mafias internas, saqueia o país e tenta mantê-lo sob a sua tutela económica e política.

Duas observações podem ajudar a medir a extensão da catástrofe que atingiu a Rússia. A produção caiu nela 40, 50 e mesmo 70 por cento nos sectores-chave da indústria relativamente a 1990 e a esperança de vida diminuiu seis anos entre 1989 e 1996, passando nos homens de 64 para 58 anos. Sem falar - mas faço isso no meu livro - dos outros desastres: a ruína dos serviços de saúde e de educação que eram o orgulho dos soviéticos; o aumento dos suicídios, o desenvolvimento da prostituição e da droga, flagelos extremamente reduzidos na antiga URSS; a miséria e a criminalidade em ascensão constante, etc.


MUR - Como reage o povo russo às humilhações que o imperialismo norte-americano inflige ao seu país? Como reage ao cerco da NATO? O sentimento da dignidade nacional, antes muito forte, permanece vivo?

HA - Sim, permanece vivo. A tal ponto que leltsin e aqueles que governam com ele, apesar de terem demonstrado o seu servilismo perante Washington, são forçados, para não se isolarem totalmente da população, a demarcar-se, pelo menos publicamente, da política dos EUA no que se refere ao alargamento da NATO até às fronteiras da Rússia. Pode afirmar-se que todo o povo russo, com excepção de um punhado de pessoas dispostas a tudo - indo até à traição se dela puderem tirar proveito -, considera o desenvolvimento da estratégia política e militar norte-americana como um insulto e uma ameaça directa à sua segurança e à sua independência.


MUR - A visita a Moscovo do Presidente da República Popular da China pode ser interpretada como um passo para uma posição comum de resistência dos dois Estados às pretensões de Washington à hegemonia mundial?

HA - difícil dizer de que maneira se desenvolverá essa aproximação sino-russa. Mas é evidente que a China e a Rússia - qualquer que seja o carácter do seu sistema actual e futuro - têm um interesse similar em fazer frente às ambições de domínio planetário que Washington não esconde. A presença à frente da Rússia de personagens que temem muito mais o seu próprio povo e um eventual regresso ao socialismo do que a ameaça representada pelo imperialismo coloca, entretanto, grandes interrogações. Esses indivíduos estarão ou não dispostos, se a oportunidade se apresentar, a trair os interesses nacionais do seu próprio país para fazer abertamente causa comum com os EUA?


MUR - Voltou optimista da sua visita à China? Como foi recebido o seu livro «O Século do Dragão»?

HA - Permita-me dar a essa pergunta uma resposta flexível, não categórica. Eu não voltei com as ideias feitas e definitivas que a maioria dos media apresentam sobre a China, ou seja que, embora ninguém possa negar os imensos progressos ali ocorridos, eles só beneficiaram um pequeno número de pessoas (o que não é verdade) e que inevitavelmente a China enfrentará uma crise grave que porá em causa brutalmente todo o seu sistema, ou que se transformará pouco a pouco num país capitalista. Penso que, sendo verdade que a China deve ainda resolver enormes problemas e fazer frente a grandes ameaças de que os seus dirigentes têm perfeita consciência, ela é capaz de enfrentar essas situações mantendo-se no caminho socialista que o seu povo escolheu há quase cinquenta anos. Creio também que é isso que devem desejar todas as pessoas progressistas do mundo. É nesse sentido que sou optimista. Foi isso que eu quis dizer em «O Século do Dragão». Aqueles que se dispuseram a ler-me estiveram de acordo com essa maneira de ver. Apercebi-me disso nomeadamente em Portugal onde o livro foi traduzido e recebido de uma maneira particularmente calorosa. Pude verificar aí, em diferentes debates em que participei, o enorme Interesse (e também a esperança) que a experiência chinesa suscita.


MUR - Os EUA obstinam-se a levar cada vez mais longe a «estratégia da globalização». O que pensa das consequências dessa orientação para a humanidade e mais especialmente para o Terceiro Mundo?

HA - Acredito que basta ver a que resultados sinistros conduziu essa orientação para se avaliar a amplitude do desastre a que pode levar. Permita-me citar a propósito o relatório anual do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas PNUD, publicado em Junho passado. Os números que aí figuram constituem uma condenação sem apelo da política imposta pelos EUA.

«Os 20% mais pobres do planeta», lê-se nesse texto, «partilharam 1,1% do rendimento mundial em 1994, contra 2,3% em 1960». Isso significa que a diferença entre países ricos e pobres, que era de 1 para 31, em 1960, aumentou até 1 para 78, em 1994! Segundo o mesmo relatório, 1300 milhões de pessoas vivem na «pobreza absoluta», isto é, com menos de 1 dólar por dia. E onde estão esses pobres? Ninguém terá lido com surpresa nesse texto que, no fundamental, habitam nas zonas «tradicionais» de pobreza, isto é, em África, na América Latina e na Ásia. Mas a África, a Ásia ou a América não estão sós. No Leste europeu e na ex-URSS, em seis anos, de 1988 a 1994, o aumento da pobreza (uma alta recorde de 700%) constituiu «um facto sem precedentes na história da humanidade», regista o PNUD. Um terço da população desses países - 120 milhões de pessoas - vive agora na miséria. Simultaneamente, os redactores do referido relatório assinalam que a supressão da pobreza não depende da utopia. Bastariam, salientam,

100 mil milhões de dólares (I0% das despesas militares no mundo) para erradicar a miséria da Terra.

O «pensamento único», que hoje denunciamos, é na realidade uma expressão que serve para designar essa ideologia da dominação total, política, económica, militar e cultural que os EUA julgam poder impor ao universo.


MUR - Você dirigiu o «Alger Republicain», um diário que foi expressão de um jornalismo revolucionário hoje muito raro. Conhecedor profundo da Argélia, como vê a crise actual naquele país? Porventura, encobertos pelos sangrentos acontecimentos que atingem aquele povo, que se bateu com tanto heroísmo contra o colonialismo francês, há factores essenciais que poderiam ajudar a explicar a tragédia em curso?

HA - É uma tragédia para todos os amigos do povo argelino ver a situação em que ele caiu. Quero apenas dizer, e sem entrar em questões da política interna do país, que aquilo que ali se passa - e em primeiro lugar a perversão integrista - não pode ser compreendido fora do quadro geral em que se encontrava a Argélia logo após a independência. Apesar das suas riquezas, apesar da força do movimento popular de libertação, a Argélia não pôde libertar-se totalmente da engrenagem colonial e neocolonial. Presentemente, como tantos outros países do Terceiro Mundo, está submetida à ditadura do FMI e do Banco Mundial e são os mesmos males que a asfixiam: saque das suas riquezas pelo estrangeiro, miséria, desemprego e desenvolvimento da corrupção, nomeadamente entre os detentores dos postos-chave. Numa situação de desespero para as massas populares, o terreno é fecundo para a expansão das demagogias fascizantes e os mais sanguinários desvios integristas e obscurantistas que assumem uma expressão tribal, nacionalista, racista ou de fanatismo religioso.


MUR - Você escreveu dois livros sobre os Estados Unidos: «SOS América» e «Requiem pelo Tio Saro». Continua a pensar que os EUA não saíram de uma crise estrutural profunda? A actual recuperação da sua economia será um fenómeno puramente de conjuntura?

HA - Em primeiro lugar, poderia colocar uma questão: recuperação em benefício de quem? Se é para o benefício dastransnacionais se é para Wall Street, se é para os já bilionários, certamente que sim, pelo menos por agora. Mas se se trata da «outra América», a dos pobres, brancos e negros, certamente não. Mesmo as estatísticas do desemprego (em queda, segundo anunciam triunfalmente) devem ser recebidas com reserva. Sabe-se que os números oficiais não consideram os desempregados antigos, definidos como «trabalhadores desencorajados» (discouraged workers). Sabe-se também que os «novos» postos de trabalho são fundamentalmente não especializados e muito mal remunerados, embora os apresentem como criados para «substituir» outros, de nível mais alto, que foram suprimidos e eram relativamente bem pagos. Sabe-se igualmente que as estatísticas revelam uma queda constante do nível de vida das camadas sociais mais desfavorecidas e de uma parcela importante dos estratos sociais médios. Creio que as contradições fundamentais que minam o sistema norte-americano persistem e continuarão a manifestar-se, mesmo que, durante períodos mais ou menos prolongados, se produzam reversões conjunturais que não devem gerar ilusões. Não, o capitalismo norte-americano não curou as suas mazelas.


MUR - O que pensa acerca do bloqueio a Cuba e de leis como a de Helms-Burton e a d'Amato Kennedy?

HA - Todos sabemos que - exceptuados os lacaios mais servis do imperialismo - os governos de todo o Mundo, incluindo aqueles que noutras circunstâncias alinham com Washington, condenam a atitude criminosa dos EUA perante Cuba. Mesmo avalisadas pelo Senado, essas famosas «leis» lembram mais métodos dignos de gangsters do que iniciativas de um Estado civilizado que pretende, aliás, apresentar-se como o defensor intransigente da moral universal e dos Direitos do Homem.


MUR - O que significa para si a Revolução Cubana?

HA - O heróico povo de Cuba é, nos nossos dias, a honra e a esperança de todos quantos, pelo mundo fora, recusam curvar a cabeça perante a arrogância, o dinheiro e o poder brutal. O dever de todo o anti-imperialista consiste em permanecer ao lado da Revolução cubana e defendê-la com todas as suas forças como seu próprio direito à vida e à liberdade.

Há dois séculos, na época em que, enfrentando todos os seus inimigos, a Revolução Francesa, derrubando reis e feudalismos, simbolizava o futuro, Thomas Jefferson pronunciou estas palavras famosas: «Para qualquer homem, a primeira pátria é o seu país, a segunda é a França.» Inspirado por um sentimento análogo, creio que podemos dizer que todo o homem merecedor desse nome, todo o revolucionário autêntico tem hoje também uma segunda pátria e que ela se chama Cuba.

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(I) «Le Grand Bond em Arrière - reportage dans une Russie de ruines et d'espérance», Ed. Le Temps des Cerises, 1997, Paris.