EM FOCO


As perversões de uma certa democracia


Por
Sérgio Ribeiro


Ao confrontar os recentes resultados dos referendos feitos aos operários de Clabecq e de Vilvorde, após meses de luta social muito dura, sinto-me tentado a fazer um rápido balanço, com convite a reflexão. Própria e alheia.


Depois do que foi o final da década de 80 e o começo desta, da queda do chamado "mundo socialista" e da implantação selvagem, à dimensão de todo o espaço planetário, do capitalismo na sua forma ultraliberal, financeira, monetarista, era difícil prever que a resposta do movimento social - uma resposta de classe -, nomeadamente na Europa, viesse tão depressa.

Nessa viragem de década, houve mudanças de nome e de símbolos, não faltaram recuos e deserções. Também por cá tivemos de tudo isso mas, comparado com o que aconteceu lá por fora, quase se pode dizer que foi "coisa pouca", ou que bem soubemos resistir. Que é, aliás, característica nossa, ou não tivéssemos a experiência que temos...

Entre os que resistiram, uns terão dito, ou pensado, "temos para anitos", outros terão dito, ou pensado, "temos para décadas". Uma questão de grau de optimismo ou de pessimismo. Não que, entre esses, a luta e a vontade de lutar tivessem esmorecido, mas o realismo impunha a consciência de que as condições de luta eram bem mais difíceis.

Depois, daqui e dali, começaram a chegar sinais. Sinais de que, afinal, "aquilo" a que alguns tinham apressadamente passado a certidão de óbito - a ideia do socialismo, o comunismo, os partidos com este nome e objectivo, as ideologias, a dicotomia esquerda/direita, a luta social, as massas na rua - não tinha morrido e até revelava alguma saúde.


Os sinais "belgas"

Não vou arrolar ou exemplificar esses sinais, de diferente importância e significado, até em razão de vivências e sensibilidades, mas tenho vindo a insistir no caso da Bélgica. Talvez porque alguns sinais significativos de que o movimento social recuperou dinâmica, e ganhou dinâmicas novas e até surpreendentes, têm vindo da Bélgica.

País-símbolo de "uma certa ideia" de Europa, quem a visitava ou passava por Bruxelas em missão de variada duração, ia decerto guardando a imagem de um Estado estruturado sobre um elevado nível de crescimento económico, dependente porque não auto-sustentado, de um Estado pouco consistente dada a sua "juventude" e os não resolvidos, ou sempre agravados, problemas de coexistência de duas comunidades - a wallon e a flamenga -, um individualismo egoísta, à margem de qualquer solidariedade social, onde um partido comunista erodira, um partido socialista se atolara em negócios, nem todos legais, e os sindicatos se tinham afastado de linhas de classe.

De repente, começaram a surgir sinais evidentemente contrários a esta imagem. Se já havia, de quando em vez, alguns indícios ténues, só detectados pelos mais optimistas, tais como reacções à subida da extrema-direita ou repúdios de racismo, foi o caso da descoberta da rede de pedofilia que teve um efeito despoletador.

Foi, na verdade, um choque. Melhor, foi algo que pôs um país, um povo, em estado de choque. E de vergonha solidária.

Mas, ao mesmo tempo, tendo surgido simultaneamente focos de luta social em defesa de postos de trabalho, contra uma orientação económica que faz tudo depender de critérios nominativos, de Maastricht, houve uma surpreendente ligação do que aparentemente nada tinha a ver entre si, e foi a sociedade inteira que se revelou, a quem para ela olhou, chocado e interrogativo. Sociedade que, no seu conjunto, se mostrou podre e não com algumas podridões pontuais e sem ligação entre si.


Um salto (talvez) qualitativo e a reacção

Diria que foi um salto qualitativo. Mas também diria, como logo pensei e disse, que ele era epidérmico, que poderia não se enraizar, que a poderosíssima máquina do capitalismo, que se serve desta democracia à sua medida, iria reagir. Que iria tentar recuperar.

Era fatal!

Pé-ante-pé, como as bestas sabidas lutando pela sobrevivência, sem precipitações, essa máquina foi tecendo a reacção. Insinuando dúvidas caluniosas sobre alguns dos mais lúcidos e consequentes - como o mostraram ser alguns dos pais das crianças que foram vítimas da monstruosa rede pedófila -, recuando em negociações difíceis e aproveitando todas as oportunidades para mostrar a faca nos dentes dos negociadores do outro lado das mesas (e das classes), avançando com promessas dirigidas aos indivíduos, desmobilizadoras de posições colectivas, de massas. Dividindo, dividindo, dividindo, como é a regra de ouro de quem sabe que, do outro lado, a força só existe quando há unidade, colectivismo, solidariedade real.


Um referendo
para "defender postos de trabalho"

Em Clabecq, uma situação de luta contra a desaparição das "Forjas" identificadoras da cidade e região arrastava-se, depois do grande salto que fora uma manifestação em que dezenas de milhares de pessoas se manifestaram na pequena cidade, solidárias com a situação das famílias dependentes das centenas de postos de trabalho em risco. Com alguns casais, pais das crianças horrorosamente violadas e mortas, à frente.

O conhecido processo de anúncio de eventuais interessados em recuperar e continuar a empresa; as habituais negociações com muitos cifrões e nenhuma atenção ao social... Tudo na espera e no estímulo da desmobilização das manifestações que se faziam na rua, à porta das salas confortáveis com mesas cheias de computadores e folhas de cálculo.

Depois, quase sem se dar por isso, surgiu a grande "solução democrática": o referendo.

Foi a consulta referendária a todos os trabalhadores das "Forjas". Com base num plano de recuperação da empresa, em que se abriu a perspectiva/promessa de se manterem 900 postos de trabalho (menos apenas um terço) acompanhada de um "plano social"... que é assim que agora se chama aos despedimentos. A alternativa ao referendo? Era evidente: o encerramento definitivo das "Forjas" e o despedimento para todos!

Com toda a "democracia", os trabalhadores, um a um, com o seu voto "decidiram". Manter a empresa e os 900 postos de trabalho. Por agora... Porque isto de promessas e compromissos da parte do capital...


Um referendo para "ganhar"
um "plano social de acompanhamento"

As eleições em França tiveram importância em toda a Europa. Sabe-se. E, na Bélgica, o caso da Renault-Vilvorde, se já era teste, ainda mais se tornou, e em várias direcções.

A luta estava dura, a luta endureceu, o novo governo francês comprometeu-se na continuidade do compromisso quando eram candidatos, acresceram as esperanças de que a decisão definitiva, irreversível, deixasse de o ser. Que não fechassem aquelas instalações fabris de ponta, que os trabalhadores tinham viabilizado cedendo direitos e regalias, cumprindo tudo o que lhes fora sendo apresentado. Que o sr. Schweitzer não levasse até ao fim o que resolvera, em brilhante gesto de gestão (pois se, ao anúncio do encerramento de Renault-Vilvorde, as cotações das acções da empresas valorizaram-se significativamente!...).

Depois, quase sem se dar por isso, surgiu a grande "solução democrática": o referendo.

Foi a consulta referendária a todos os trabalhadores da Renault-Vilvorde. Com base num "plano social de acompanhamento" que é assim que agora se chama ao encerramento de uma empresa com despedimento de todos os operários. A alternativa ao referendo? Era evidente: o encerramento na mesma, mas sem o tal "plano social de acompanhamento", cheio de cláusulas "muito favoráveis" para os trabalhadores, como "prémios de despedimento" e "indemnizações morais" com zeros suficientes para serem aliciantes.

Com toda a "democracia", os trabalhadores, um a um, com o seu voto, "decidiram". 92% "resolveram" acabar com a empresa e extinguir os seus postos de trabalho, e receber a "paga" de tal decisão.


As perversidades "democráticas"
e o caminho da luta

Há, neste caso dividido em dois, uma lição maior a reter. O capitalismo tem bem mais do que os sete fôlegos neste luta de gato e do rato, se assim me é permitido dizer. E, por vezes, reage com uma rapidez que também surpreende. Felina.

A utilização de referendos nas empresas é, pelo menos com esta dimensão, uma novidade. Que vem ao encontro da reivindicação democrática da utilização do referendo como instrumento efectivo de uma democracia.

Mas é verdade que o voto é um acto individual, em que cada um está consigo próprio e só uma forte consciência de classe pode vencer o isolamento do trabalhador perante a decisão que é apenas sua no acto de votar sobre uma questão colocada em termos viciados, perversos.

Quando se pergunta a um trabalhador se quer manter "estes" postos de trabalho ou que a empresa acabe, quando se lhe pergunta se, indo encerrar-se a empresa, quer estes "prémios" e "indemnizações" já assegurados ou a ausência de um "plano social de acompanhamento", só quem tem consciência de que a resposta não é individual mas colectiva, que há outras alternativas, que os termos em que se colocam as questões são outros bem diferentes e derivados da luta e das lutas anteriores e vizinhas (ou não), pode dar outras respostas. De classe.

Os sinais existem. Multiplicar-se-ão. Não se conte é com "distracções" ou facilidades do outro lado. Os caminhos não são fáceis. Mas são, apenas e só, os da luta.