TELEVISÃO


A Espanha, e depois


Por Correia da Fonseca



A Guerra Civil de Espanha vive em mim como uma ferida nunca completamente cicatrizada. E esquisito, porque quando Francisco Franco decidiu encabeçar a cruzada contra a República acabava eu de aprender a ler, e mal, pelo que decerto não estava ainda maduro para as sólidas opções políticas. Mas o caso é que entre 36 e 39 a Guerra de Espanha entrou em minha casa, passe a expressão, e por vias que nunca soube identificar com. nitidez tomou conta de mim, para o resto da vida, a solidariedade com o esmagado sonho espanhol de libertação e justiça.


É claro que a partir da adolescência me passaram pelas mãos, como a tantos outros, os livros que me falavam da epopeia espanhola mesmo através do severo filtro da repressão salazarista. Mas já então eu tinha dentro de mim, vencido mas não esmagado, o «No passaran!» hasteado em 36 nas ruas de Madrid. Por isso continuo a acorrer, ávido, para olhar tudo quando a TV me traga acerca daqueles três anos trágicos. Sempre no Segundo Canal, é claro, desde que se trate da televisão portuguesa.


Do Ebro ao Amazonas

Por exemplo: a TV2 está agora a transmitir, nas manhãs de domingo, uma série acerca da Guerra Civil de Espanha, e eu sacrifico de bom grado as manhãs estivais para estar com os republicanos espanhóis que resistiram na Casa del Campo ou em Guadalajara, que foram massacrados em Badajoz e por toda a Espanha. Trata-se de uma série britânica da Granada TV, produzida em 83, e é claro que não me traz novidades, embora sendo certo que poderia trazê-las a muita gente que da Guerra de Espanha julga saber alguma coisa e de facto só sabe o que lhe deixaram saber o fascismo e os seus herdeiros. Quando, ainda não há muito tempo, uma série de excelentes artigos do jornalista Viale Moutinho, publicados no «DN», ensinou ao País alguns rudimentos sobre a verdade da Guerra Civil Espanhola, choveram no jornal cartas de leitores escandalizados porque a verdade não condizia com a versão nazi-fascista que durante décadas lhe havia sido impingida. Esses, e decerto muito outros, teriam muito a aprender com a série que a TV 2 está a transmitir em horário tão sabiamente discreto que concilia a vantagem da transmissão com a conveniência ideológica de só ser visto por raros.

Dir-se-á, e muitos o dizem, que a Guerra Civil de Espanha é História antiga, verdadeiramente jurássica, e que quem ainda se interessa por tão remotos episódios está confessadamente situado à margem do entendimento do mundo actual. Pois sim, mas eu peço licença para sustentar precisamente o contrário: que pouco ou nada entenderá do mundo actual quem se instale, satisfeitinho, na teia de ignorâncias e viciações em que a memória deste conflito foi envolvida.

E talvez tudo comece no equívoco de se considerar que a Guerra terminou em 39 com a vitória franquista (completada depois com décadas de repressão selvática que continua a ser ignorada pela generalidade das gentes) ou, na alternativa, com a morte natural e doce do franquismo em 75. Contudo, é já consensual reconhecer-se que na Espanha de 36/39 não se defrontaram apenas espanhóis contra espanhóis, embora com apoios estrangeiros, mas sim um projecto de futuro e a violenta rejeição dele ou, por outras palavras, um projecto de Esquerda contra um projecto de Direita, ambos com significados e envolvências que largamente ultrapassavam a dimensão espanhola. Acontecendo que esse confronto está longe de encerrado, porque é mentira que se tenha dissolvido a fronteira entre Direita e Esquerda e porque é mentira que a História tenha chegado ao fim, como compreensivelmente desejam os que se sentem de momento vitoriosos.

Por mim, olho a sério que a TV 2 transmite, vejo as imagens da Brigada Internacional a combater no Ebro e do bombardeamento de Guernica, e lembro-me de como tudo aquilo prosseguiu para lá do fim aparente: na resistência ao nazi-fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, na queda de Berlim em 45 e no derrube do Muro em 89, na China de 48 e no Brasil dos coronéis, na Cuba libertada por Castro e no Chile martirizado por Pinochet. Olho-a e reflicto que a Guerra de Espanha também prossegue na luta dos seringueiros do Estado do Acre, no Brasil, que foi o tema de uma «Grande Reportagem» transmitida pela SIC, numa destas noites, decerto para que não se possa dizer com rigor que é lixo tudo quanto transmite.


Na Era da Comunicação

De facto, lá estavam, de um lado, os camponeses pauperizados, dificilmente sobrevivendo acima do desespero, decididos contudo a não se renderem, e, do outro, os grandes senhores das terras e das indústrias. Como na Espanha de há sessenta anos. E, como há sessenta anos, a solidariedade de gente honrada de diversos lugares do mundo, não disposta, é certo, a bater-se de armas na mão como os brigadistas do Ebro, mas já a usar essas outras armas possíveis que são as câmaras de televisão mobilizadas desta vez para a verdade como tantas vezes o têm sido para a falsificação.

Dos seringueiros do Acre não se tem falado muito. Dos Sem-Terra, sim, talvez sobretudo depois do assassínio de Chico Mendes, também do Acre. Dele falou a reportagem, embora um pouco de passagem, mas também de muitos. Outros igualmente assassinados a mando de grandes fazendeiros ou de grandes empresários, uns e outros empenhados em enorme negociatas cujo altíssimo Preço há-de ser pago pelos outros, pelos pequenos, pelos que não têm terra, nem empresa, nem grossas contas nos bancos, nem amigos nos governos. Pelos que não têm nada mas ainda assim metem medo e, porque mete, medo, contra eles são mandados assassinos da mais sinistra espécie. A reportagem contou . com palavras e com imagens, a reportagem contou como os assassinos a soldo dos que mandam, mas temem, matam os que de entre os explorados mais levantam vozes e acções para resistirem às iniquidades, Como eles matam de modo a retribuírem o medo que sentem: torturando as vítimas antes do assassínio, serrando-lhes os membros, furando-lhes os olhos. E a gente aqui, e o mundo, sem sabermos. No País Basco, os desesperados da ETA matam um oficial da polícia ou assassinam um refém, à bomba ou a tiro, e logo uma onda de justificada rejeição chega até nós, nos contagia, e há protestos indignados, e vigílias contra o terrorismo, coisas assim. Mas não sabemos que no Brasil democrático há trabalhadores humildes que são barbaramente supliciados antes de morrerem, homens que falavam português e se atreviam a resistir a infâmias diversas. Não sabemos, porque os que nos vêm contar do terrorismo basco calam o hiperterrorismo dos latinfundiários brasileiros.

Calam porque o desconhecem e se é assim faltam ao seu dever primeiro de se informarem, ou porque optam por não querer saber, assim se tornando cúmplices dos crimes.

É claro que a SIC, transmitindo esta reportagem (de origem dinamarquesa, refira-se), furou o silêncio e por isso lhe são devidos aplauso e louvor mesmo sem se cuidar de saber os motivos da excepção.

Mas a questão da eficacíssima muralha de silêncios que nos separa dos seringueiros do Acre como de milhões de outros semiescravos que por esse planeta fora sofrem , lutam e morrem, nem sequer se pode situar no quadro dos media nacionais: é uma cumplicidade que atravessa meridianos e paralelos para ditar a sua lei ao mundo inteiro, forte dos poderes que maneja, das cobardias que injecta e das ignorâncias que estimula. A gente olha as imagens da Guerra de Espanha, os toscos documentos fílmicos que nos mostram os miseráveis camponeses da Andaluzia e de Castela antes do sobressalto de 34, e percebe melhor a dimensão do crime franquista. Porém, sessenta anos depois, há milhões em situação equiparável ou pior, e não sabemos nada deles. Na Era da Comunicação, dizem alguns.