Que farei com esta caixa?

Por Correia da Fonseca



Quem não deseja um mundo maravilhoso?, perguntava Ted Turner, o patrão da CNN, no final de uma extensa reportagem que o canal franco-alemão ARTE foi fazer ao próprio coração daquilo a que chamou «O Planeta CNN». A resposta à questão parece óbvia: não há quem não o deseje, ao tal mundo perfeito. Porém, as coisas começam a complicar-se quando nos lembramos de que o que são maravilhas para uns não o são para outros, e a própria reportagem deixou escapar alguns sinais disso. A dada altura, um porta-voz da casa dizia que, no despique com a concorrência, os da CNN rir-se-iam melhor porque iriam rir-se «a contar dinheiro». Num outro momento, o jornalista John Holliman, falando do seu trabalho durante a Guerra do Golfo, lembrava-se de como se entusiasmara ao descobrir que podia relatar o que então se passava «como se fosse uma partida de futebol». Foram dois pequenos sinais que nos permitiram pressentir o que para aqueles dois, entre muitos, seria um mundo maravilhoso.


Das palavras aos factos

Contudo, um e outro eram elementos significativos daquilo que poderá ou não designar-se por «equipa da CNN», comandada por um homem que surgia a transbordar de boas intenções. Muito mais que isso: um homem que se mostrava convencido de que a intervenção da sua cadeia de TV podia ser um factor decisivo para a salvação do mundo, se a salvação é possível. A dúvida quanto à consecução do objectivo foi reconhecida por ele próprio, ainda que de forma discreta: «- Se a humanidade sobreviver, daqui a cem anos olhará para trás e ... ». A fórmula condicional foi sintomática porque revelou o cepticismo afinal alojado no espírito de um homem que está situado no âmago do capitalismo transnacional, que maneja alguns poderes e que instalado nessa circunstância perscruta o futuro possível. A questão é que Ted Turner percebe, ou pelo menos intui, que o capitalismo dominante é uma espécie de sentença de morte ditada à própria humanidade e a prazo não muito longo. Sendo ele próprio um produto e um agente desse sistema, dotado de capacidade crítica limitada, foge ao desespero possível mediante noções mistificadas acerca da sua própria acção e dos poderes de que dispõe. Corri optimismo e ingenuidade, de que aliás ele próprio expressamente se dá conta, força uma aproximação entre a intervenção da CNN no mundo mediático e os efectivos ou supostos êxitos da paz e da justiça nos últimos anos. Segundo ele, é de extrema importância acentuar as realidades positivas e encorajadoras enquanto se subalterniza o que é de sinal contrário. Infelizmente para o vencimento desta estratégia anunciada, a própria reportagem demonstrava que a prática da CNN não vai nesse sentido. E não é difícil adivinhar os motivos disso: é que «o mercado» em que a CNN se inclui e de que se nutre, os «valores» que nele são rendíveis, impõem outras prioridades como condição de sobrevivência. E quem fala no mercado fala, já se vê, nos poderes que o moldam não apenas à sua imagem e semelhança, como qualquer deus quanto às suas criações, mas também e principalmente no sentido dos seus interesses.

A reportarem, que a SIC transmitiu no horário tresnoitado que reserva para os programas com algum efectivo interesse, confirmou o que já toda a gente tinha larga oportunidade de saber: que foi a Guerra do Golfo que lançou a CNN para a primeira linha dos media transnacionais ao transformar uma tragédia para milhares de seres vivos em espectáculo asséptico fornecido ao domicílio. Não é de crer, é claro, que o próprio Turner não se tenha dado conta dessa contradição fundamental que na verdade induz um diagnóstico. É certo, porém, que ele próprio deu indícios de uma surpreendente ingenuidade, talvez simulada, talvez não. Já quando, no início da entrevista, perguntou se o ARTE transmite por satélite, revelou uma ignorância notável mesmo num americano, uma vez que o ARTE é uma realidade importante no contexto televisivo europeu. Quando falou, sensibilizado, nas crianças «que vão para a cama com fome» por esse mundo fora, pareceu nem sequer se aperceber dos milhões que nem cama têm (um pouco disparatadamente, lembrou-me Maria Antonieta a aconselhar o povo francês a comer bolo, já que lhe faltava o pão). A sua aliás compreensível insistência em dizer-nos que «a informação é muito importante» e, mais ainda, que «temos de saber o que se passa no mundo para podermos planear as coisas», passa ao lado do que é fundamental e devia ser óbvio, ao menos para ele: planear as coisas, como, com que objectivos, em proveito de quem? E já me dispenso de questionar o que é isso de «saber o que se passa no mundo» através de um tecido informativo que não é mais que uma arma de triagem, ocultação e falsificação, ao serviço de um domínio planetário.


A caixa que manda

Em dado momento, a reportagem foi saber o que estava a passar-se no sector da CNN que se ocupa de Economia, e lá recolheu a notícia que de momento estava a ser divulgada: «Os americanos ganharam mais dinheiro o ano passado e não o gastaram.» Exemplar: tudo indica que é na base do conhecimento de dados como este que «as coisas» irão ser planeadas, pelo menos se levarmos a sério as palavras proferidas por Ted Turner no seu gabinete decorado com uma foto de Clark Gable e uma Bíblia em edição de luxo. Porém, para quem não se pareça com Turner, torna-se claro que não é por caminhos destes que iremos desembocar no mundo maravilhoso para que a CNN estará a trabalhar afanosamente. Parece claro, até, que a utilização da TV tal como vem sendo feita por Turner (e convém lembrar que ele ainda não se situa entre os piores senhores de poderes mediáticos nos States e no mundo) não ajuda a que um processo de aliás inevitável transformação conduza a qualquer coisa de bom. A questão é que o mundo está difícil, porventura à beira de vários abismos como em nenhum outro momento, e a TV como foco irradiador de tolices, imposturas, pistas falsas, não prenuncia nada de agradável.

Chegados aqui, ficamos perante a questão que serve de título a estas notas, título aliás manifestamente pilhado a uma notável mas um pouco esquecida peça de Saramago, e depois transformado não só para dissimular o abuso como para o adaptar às necessidades do texto. O caso é que estão aí, por um lado, um instrumento de tal modo precioso que bem se pode dizer que os homens ainda não o souberam merecer e, por outro, problemas terríveis, muitos deles eventualmente letais, que é preciso resolver enquanto é tempo, sendo que o tempo já é escasso. Já não é cedo para que a caixa que coabita hoje com quase todos nós seja utilizada como factor de mobilização já não apenas para a instalação de mecanismos de justiças de ordem vária mas sim, mais simples e dramaticamente, de sobrevivência. A questão é que os poderes das múltiplas explorações podem prolongar o crime da mentira e da anestesia, mas não podem escapar às derrocadas e asfixias que eles próprios aceleram. Serão excelentes as intenções e os sentimentos de Ted Turner, o que é duvidoso mas não impossível, o pior é que entretanto as gangrenas vão alastrando. Mesmo no que poderá entender-se como menos maus momentos da TV que nos impingem, não é executando episódicas variações sobre o trabalho antiminas da falecida Lady Di, mas sim denunciando todos os dias o culto suicidário das violências de vários graus e planos, que a caixa quase mágica pode tornar-se, finalmente, aliada dos homens. Assumindo, por exemplo, que a expoliação dos recursos do chamado Terceiro Mundo e a exploração do desemprego «inevitável» são violências bem piores que o quase apenas emblemático Dragon Ball.

Não me perguntem como vai acontecer essa mutação miraculosa, que eu não sei. Sei, porém, que é forçosa, necessária, para que daqui a cem anos se possa olhar para trás, corno disse Ted Turncr. Pode o aparente milagre começar noutras áreas, mas tem de passar por ali: pelo ecrã que, em cada casa, manda nos homens. Por conta alheia e sem que eles dêem por isso.