Sobre o PS, as eleições e o abuso de poder
Os que «comem» e os que «cheiram»

Por Luís Sá
membro da Comissão Política do CC do PCP



A boçalidade do ex-candidato do PS de Penalva do Castelo e as outras concepções que são difundidas sobre as supostas vantagens da dependência do poder não são mais do que uma parte da crescente instrumentalização do poder para efeitos eleitorais por parte do PS, que parece não conhecer limites e de que os mais elementares escrúpulos estão arredados.


O ex-candidato socialista à presidência da Câmara Municipal de Penalva do Castelo, actual presidente da Câmara eleito pelo PP, teve nos últimos dias um comportamento verdadeiramente emblemático a vários títulos.
Em primeiro lugar, ao mudar do PP para o PS e ao tentar "justificá-lo" com alegre ligeireza mostrou a falta de profundidade e coerência de algumas opções políticas; foi mais um a mostrar como valem pouco.
Não são apenas juízos éticos que estão em causa ou certas formas sem ética de estar na vida política que merecem reparo. É também, neste caso, a promiscuidade política e ideológica, só possível devido ao facto de ser cada vez mais difícil encontrar traços de identidade na prática de Governo do PS que sejam absolutamente inaceitáveis para os candidatos de uma direita mais ou menos liberal (e às vezes nem isso se pode dizer com segurança em alguns casos)...
Em segundo lugar, e essa é uma questão central, o ex-candidato socialista tentou explicar a sua mudança com um argumento altamente revelador: quem é afecto ao poder "come, quem não o é, cheira".Ora, segundo ele, a sua candidatura pelo PS seria a única forma de Penalva do Castelo "comer".
A declaração surge a uma primeira leitura, obviamente, como boçal e até como implicando um excesso de ingenuidade. Poderia ser, para os dirigentes ou candidatos do PS, algo para dizer ou insinuar em privado ou em pequenas iniciativas eleitorais e não para proclamar aos quatro ventos, através de orgãos de comunicação social de difusão nacional, pelo menos nestes termos.
Só que o Ministro Jorge Coelho, na qualidade de dirigente do PS e líder da Organização Distrital de Lisboa, utilizou um argumento semelhante num debate interpartidário recente promovido pela TSF. E o argumento vai sendo repetido, um pouco por todo o país, por um conjunto de pequenos e médios oportunistas, candidatos às autarquias ou dirigentes locais do PS. Pensam encontrar aqui um trunfo para captar eleitorado hesitante ou para convencer os apoiantes do PS que estão descontentes com a política do Governo ou com o desempenho autárquico do PS.
Na sua ânsia de captar ou de não perder votos não vêem — ou fingem não ver — a enormidade, do ponto de vista democrático, daquilo que afirmam por esse país fora. Trata-se, com efeito, de uma chantagem inadmissível e anti-democrática sobre a vontade e o querer das populações: ou estas votam no partido que está no poder, ou as suas terras e as suas autarquias, não "comem". Só cheiram, isto é, limitar-se-iam a ver as autarquias ao lado que são do PS comer.
O argumento é inadmissível e escandaloso porque o Estado e toda a Administração Pública estão obrigados, quer legalmente, quer por elementares princípios democráticos, a respeitar princípios como a igualdade e a imparcialidade, quer face aos cidadãos, quer face aos municípios. Não podem prejudicar nem beneficiar as populações devido ao seu voto.
Uma tal actuação é intolerável do ponto de vista democrático porque o voto deve ser livre, consoante as opções de cada um e a apreciação que fizer da personalidade e aptidões dos candidatos, da obra feita — ou não — por cada partido ou coligação nas autarquias. Podem também contar a apreciação da actuação no país, o programa dos partidos e coligações para o mandato na autarquia ou outros motivos. O que é intolerável é que se pretendam introduzir mecanismos de pura chantagem e violência antidemocrática para condicionar e manipular a vontade dos eleitores.
Sabemos o que acontece um pouco por todo o mundo com eleições e processos eleitorais, mesmo em sistemas como o português assentes na representação política baseada em eleições. A igualdade de oportunidades nunca é absoluta: os sistemas eleitorais e os meios de comunicação raramente são neutros, há candidaturas ligadas ao poder económico com maiores possibilidades financeiras, entre muitos outros aspectos. Mas há um limiar mínimo a partir do qual se passa da desigualdade de oportunidades para um campo em que se procura que impere a manipulação antidemocrática e em que é o próprio limiar mínimo de seriedade eleitoral que é questionável. Em todos os casos a única atitude possível face ao que está mal e é injusto é "não tomar como normal o que acontece todos os dias", é não deixar de denunciar as tentativas de manipulação e de reagir contra elas com indignação e protesto.
De resto, impõe-se lembrar que a distribuição de verbas de acordo com critérios justos e objectivos, de modo a impedir manipulações, só foi conquistada através de grande lutas das autarquias e das populações. Só através destas foi possível romper com a dependência do sistema de distribuição casuística de subsídios e comparticipações herdado do fascismo.
É certo que, designadamente, a pretexto de "contratualização" de investimentos em infra-estruturas ou equipamentos, aumentaram com o cavaquismo formas arbitárias de distribuição de verbas. Mas todos os outros partidos - incluindo o PS - afirmaram-se contra os abusos e favores e desfavores nos financiamentos às autarquias e na distribuição de investimentos. Foi sempre exigida, nesse processo, a transparência e controlo democrático e a objectividade de critérios e denunciada como sectária e antidemocrática a existência de favores ou desfavores na distribuição de verbas.

Parece que o PS faz agora tábua rasa de tudo isso. Propõe-se afirmar ou insinuar que é preciso apoiar o Governo e o Poder para "comer". Que moral e concepção do poder e profunda desonestidade estão subjacentes a estas declarações?
A verdade é que todos os indicadores mostram que os municípios da CDU têm conseguido maiores níveis de investimento e de atendimento das necessidades básicas das populações na generalidade das áreas a cargo das autarquias.
Não foi preciso o PCP estar no Governo para as autarquias de maioria CDU fazerem mais obra do que as autarquias de maioria PS ou PSD. E para isso não tiveram que assumir a postura servil e de espinha curvada face ao "poder central" que agora é insinuada ou mesmo boçalmente afirmada como indispensável por parte do poder local. É certo que os eleitos autárquicos da CDU são acusados de um grande «crime»: a actividade de reivindicação e "contrapoder" (foi o caso do Ministro Jorge Coelho no debate referido). Mas em relação a este crime só há razão de orgulho: é necessário e legítimo que os eleitos autárquicos defendam os interesses da população que representam e das autarquias de cujos órgãos são membros junto do Governo e da Administração Central. E bom é que estejam nas autarquias os que lutam, com as populações, esteja quem estiver no poder, e não os que esperam servilmente que lhes caiam pequenas migalhas na mesa...

O que importa sublinhar ainda é que a boçalidade do ex-candidato do PS de Penalva do Castelo, e todas as outras concepções que são difundidas, não são mais do que uma pequena parte de uma crescente instrumentalização do poder para efeitos eleitorais por parte do PS, que parece não conhecer limites e que os mais elementares escrúpulos estão arredados.
Um exemplo é, desde logo, a ressurreição política dos cargos de Governador Civil (para o qual foram nomeados, muito frequentemente, os líderes distritais do PS). Distribuem subsídios com alarido, visitam feiras e locais de grande presença popular, acompanhados dos candidatos do PS, agitam-se freneticamente em exclusivo benefício partidário.
A arrogância dos novos detentores do poder ao fim de uma década em que estiveram dele privados parece às vezes não ter limites, nem sequer a preocupação de respeitar as aparências. Por vezes, são eleitos ou candidatos do PS que anunciam os subsídios estatais às colectividades. E vemos casos como o do Governador Civil de Setúbal a proclamar o objectivo de o PS vencer em todos os municípios do distrito, arredando totalmente a CDU que actualmente tem 12 presidências de Câmaras em 13.
Também as Comissões de Coordenação Regional e os restantes cargos da Administração Central desconcentrada regionalmente servem para o efeito. Às vezes, as nomeações para estes últimos "jobs" só se verificaram depois do anúncio das candidaturas às eleições autárquicas, procurando a instrumentalização desses "jobs" nas campanhas eleitorais.
Vimos também o folhetim do uso e abuso das acções de tutela, bem expresso no facto de ter sido intreposta uma acção para dissolver a Câmara da Amadora por atraso (que foi explicado) na aprovação do orçamento, ao mesmo tempo que não eram adoptadas idênticas acções em relação aos municípios de maioria de outras forças políticas com a mesma situação. O Tribunal, aliás, solicitou indicação de que acções contra outros municípios tinham sido interpostos por idênticos motivos.
Assistimos também à tentativa de instrumentalização política de dados de relatórios de inquéritos, inspecções e sindicâncias contra a CDU, ao mesmo tempo que foi sonegado o conhecimento público dos relatórios sobre idênticas acções doutros municípios em que a divulgação não convém ao PS. Tudo isto assenta na contradição entre grandes declarações grandiloquentes sobre modernidade, transparência e outros valores, ao mesmo tempo que a prática procura contrariá-los das mais diversas formas.

Aproximam-se grandes batalhas políticas de massas. Nos próximos meses, assume particular importância a intervenção do PCP e dos seu aliados para prosseguir e alargar a presença da CDU nas autarquias, não só para permitir o prosseguimento, mas também para alargar o trabalho gigantesco no Poder Local, em maioria ou minoria. Um trabalho que não fez só uma grande obra para as populações, mas que — exactamente para o tornar mais profundo — o conseguiu fazer muitas vezes de forma aberta, participada e democrática, abrindo novas vias para um modo diferente de conceber o poder.
Ao contrário do que alguns afirmam (por exemplo, Paulo Portas no último "Independente") há diferenças — apesar de toda a complexidade — entre os vários modelos de gestão autárquica. Há palavras que podem ser de todos, sobretudo em período eleitoral: abertura, participação, justiça, luta pelo desenvolvimento, intervenção decidida em áreas como o ordenamento, o ambiente, a cultura, o património. Mas os factos aí estão: para a CDU não são apenas palavras, são práticas comprovadas.
Noutros casos, parece que as próprias palavras são exclusivas da CDU: cultivo do serviço público como meio de concretizar os direitos das populações, apoio aos que menos têm, igualdade e outras. Há defeitos a corrigir aqui e ali? Certamente. Mas isso não afasta a singularidade e profunda democraticidade de um projecto que marcou estes 20 anos de Poder Local.

E os eleitos e os futuros candidatos da CDU tudo farão para aprofundar e marcar mais intensamente as já sólidas e indestrutíveis diferenças em relação a outras forças políticas.