A propósito dos círculos uninominais
Por António
Filipe
deputado do PCP
A criação de círculos uninominais para a Assembleia da
República, constante do anteprojecto de revisão da lei
eleitoral publicitado pelo Governo, longe de servir os tão
proclamados propósitos de aproximação entre eleitos e
eleitores, visa condicionar o comportamento do eleitorado por
forma a impôr a bipolarização artificial da representação
política e a limitar drasticamente o alcance prático do sistema
de representação proporcional.
1. Não obstante ser do conhecimento de qualquer
cidadão minimamente informado que o objectivo central do PS ao
acordar com o PSD os termos do recente processo de revisão
constitucional foi precisamente permitir a alteração das leis
eleitorais, não deixou a comunicação social atenta e
veneradora de se fingir surpreendida pelo facto da anunciada
surpresa da chamada "rentrée" política do engenheiro
Guterres consistir afinal no inevitável anúncio de uma proposta
de revisão da lei eleitoral para a Assembleia da República.
Reafirmando os seus nobres objectivos, de manter o princípio da
representação proporcional, de não forjar vitórias na
secretaria, e de aproximar os eleitos dos eleitores, mas
esquecendo-se de explicar - como bem foi assinalado pelo PCP - em
que é que a Constituição antes de revista impedia a
concretização de tais propósitos, o primeiro-ministro voltou a
invocar a criação dos círculos uninominais para a Assembleia
da República como o passe de mágica capaz de reconciliar os
cidadãos com a política.
Seria portanto a criação de tais círculos, possibilitada pela
revisão constitucional e proposta no anteprojecto de revisão da
lei eleitoral publicitado pela Presidência do Conselho de
Ministros, que, introduzindo uma modalidade de
"personalização do voto", permitiria uma "mais
estreita ligação dos eleitos e dos eleitores e uma
responsabilização política mais directa do Deputado perante os
seus eleitores".
Ocorre desde logo referir, com pertinência, a propósito das
alegadas virtudes dos círculos uninominais na modernização do
sistema político e na identificação dos eleitores com os seus
eleitos, que os círculos uninominais marcaram a história do
parlamentarismo português na segunda metade do século XIX,
dando lugar a práticas como as que Camilo lapidarmente
ridiculariza na "Queda de um anjo", na personagem de
Calisto, morgado de Agra de Freimas, eleito pelo círculo
uninominal de Miranda. E ocorre ainda recordar que os proponentes
da criação dos círculos uninominais em nome da identificação
entre eleitos e eleitores ainda não responderam à questão -
diversas vezes colocada pelo PCP - de saber com quem se
identificariam os eleitores, provavelmente em maioria, que não
tivessem votado no único candidato eleito.
Mas para além destas questões sempre pertinentes, a proposta de
criação de círculos uninominais para a Assembleia da
República constante do anteprojecto governamental de revisão da
lei eleitoral e os propósitos que alegadamente se lhe associam,
justificam, ainda que sem qualquer pretensão de esgotar o
assunto, mais algumas observações.
2. Afirma o ministro António Vitorino na
apresentação do anteprojecto do Governo, que os círculos
uninominais visam promover "uma responsabilização
política mais directa do Deputado perante os seus
eleitores". Fica no entanto por explicar, considerando o
estatuto constitucional da Assembleia da República e dos
próprios Deputados, qual a diferença de estatuto que existiria
entre um Deputado eleito por um círculo uninominal e outro,
eleito por um círculo distrital ou regional, quanto à sua
responsabilização política perante os eleitores.
A Assembleia da República, enquanto órgão de soberania
representativo de todos os cidadãos portugueses, tem um estatuto
constitucional bem definido. Compete-lhe basicamente exercer a
função legislativa, podendo legislar praticamente sobre todas
as matérias, e fiscalizar a actuação do Governo que, como se
sabe, responde politicamente perante a Assembleia da República.
Daí que as funções exercidas pelos Deputados tenham sobretudo
uma dimensão de carácter nacional e que a Constituição refira
explicitamente que os Deputados representam todo o país
independentemente do seu círculo de eleição. Naturalmente que
no exercício das suas funções os Deputados têm por
obrigação dar atenção a problemas concretos de âmbito local
e regional e procurar ajudar à sua resolução, designadamente
através de perguntas ao Governo, de requerimentos, ou mesmo de
propostas para o Orçamento do Estado. Mais: Tendo sido eleitos
por um determinado círculo eleitoral, é natural e mesmo
saudável, que os Deputados confiram particular atenção aos
problemas específicos desses eleitores. Aliás, quanto à
ligação dos Deputados aos problemas concretos das populações
não tem o PCP lições a receber de ninguém, demonstrando
claramente que não é preciso alterar a lei eleitoral para que a
ligação aos interesses do povo seja possível e efectiva.
Agora, o que importa ter presente é que, tendo os Deputados o
direito e dever de se interessarem pela resolução de problemas
locais, nem essa resolução depende directamente de si (mas do
Governo, ou mesmo de autarquias locais), nem a pertença a um
círculo eleitoral impede qualquer Deputado de se interessar pela
resolução de problemas das populações de outros círculos.
Quando o Governo PS faz depender a responsabilização directa
dos eleitos perante os eleitores da existência de círculos
uninominais seria bom que explicasse qual é a diferença entre o
estatuto constitucional dos Deputados eleitos por esses círculos
e os que são eleitos por círculos regionais ou por um eventual
círculo nacional, e já agora, se estes estão isentos de
qualquer responsabilidade perante os eleitores. É que a ser
verdade que a ligação entre os eleitos e os eleitores seria
assegurada pela existência de círculos uninominais, teríamos
de concluir que a proposta do Governo apontaria para a
existência de 94 Deputados que seriam responsáveis directamente
perante os eleitores e de 136 que o não seriam.
Essa ideia de que o um Deputado - e só a ele - corresponderia o
dever de velar pelo interesse específico de um conjunto de
eleitores territorialmente delimitado não tem qualquer
correspondência, nem com o estatuto constitucional da Assembleia
da República nem com o dos próprios Deputados. Nem a Assembleia
da República é um órgão dotado de poderes executivos nem o
Deputado pode ser reduzido a um mero procurador de interesses
locais. Na base da proposta da criação de círculos uninominais
está uma ideia de Deputado, não como porta voz dos interesses
do povo que representa e como fiscalizador da acção
governativa, mas como alguém que, visando criar ou alargar
clientelas partidárias locais, se preocupe fundamentalmente em
calcorrear os corredores dos ministérios a meter cunhas àqueles
que deveria fiscalizar. Prática que, aliás, não é estranha a
muitos dos Deputados dos Partidos que nas últimas décadas têm
tido responsabilidades governativas.
3. Mas acontece ainda que, ao contrário do que foi
escrito em vários jornais, o anteprojecto do Governo para a
revisão da lei eleitoral, faz coincidir a existência
simultânea de um círculo nacional, de círculos regionais e de
94 círculos uninominais, mas atribui a cada eleitor um único
voto. Confrontado com as alegadas maravilhas dos círculos
uninominais, pensaria legitimamente qualquer eleitor que, a
partir da sua criação, poderia conjugar o voto num Partido,
ajudando a viabilizar uma solução governativa da sua
preferência, com o voto num candidato que, sendo embora de outro
partido, merecesse a sua confiança. Puro engano.
Fica assim mais claro o que pretende verdadeiramente o PS. No
círculo nacional, apresentar-se-ía o "candidato a
primeiro-ministro" e toda a mediatização da campanha
eleitoral seria construída à sua volta. Nos círculos
uninominais, em que, segundo projecções em função dos
últimos resultados eleitorais, só o PS e o PSD teriam eleito
Deputados, procurar-se-ía acentuar a ideia de que o único voto
útil seria aquele que contribuísse para a eleição do único
Deputado do círculo. Assim, a campanha a favor da
bipolarização conseguiria o milagre de ter sol na eira e chuva
no nabal.
Não passa assim esta criação de círculos uninominais de uma
verdadeira fraude aos eleitores, que, com boa probabilidade se
arriscariam a ter de votar em quem não quereriam que fosse
eleito. Cruel dilema o de o eleitor que, para votar no Partido da
sua preferência no plano nacional ou regional é obrigado a
votar, no círculo uninominal, num candidato que tem por
incompetente ou desonesto, ou o de um eleitor que, para ajudar a
eleger um candidato em que confia a nível local é obrigado a
contribuir de igual modo para viabilizar uma solução
governativa que não deseja. Bela maneira de aproximar os eleitos
dos eleitores e de reconciliar os cidadãos com a política.
Resulta claro que os propósitos do PS na alteração da lei
eleitoral para a Assembleia da República não são tão nobres
como o engenheiro Guterres pretende fazer crer. Bem ao
contrário. O objectivo do PS é sobretudo criar um cenário que
condicione o comportamento do eleitorado num sentido
bipolarizador, que contribua para inculcar a ideia de que a
única opção possível dos eleitores se resume à escolha entre
o PS e o PSD, conjugando para isso dois elementos. No plano
nacional, a dramatização da escolha do "candidato a
primeiro-ministro", reduzindo todos os restantes candidatos
à posição de figurantes. No plano local, a insinuação,
também falsa, de que está em causa a eleição de um só
Deputado e que importa concentrar votos em quem tenha
possibilidades reais de vencer.
4. Garante o engenheiro Guterres que a
proporcionalidade permaneceria intocada, na medida em que o
apuramento do número de eleitos seria feito com base nos
círculos nacional e regionais. Pura falácia. Não basta
proclamar a proporcionalidade de um sistema eleitoral para que
ele efectivamente o seja. Não basta assegurar a existência de
um só elemento que caracteriza os sistemas proporcionais para
que a proporcionalidade esteja assegurada. A natureza de um
qualquer sistema eleitoral define-se em função dos resultados a
que conduz e não apenas através da consideração da fórmula
de cálculo utilizada para a conversão de votos em mandatos.
Não restam dúvidas que nos propósitos do PS, o nobre
princípio da aproximação entre eleitos e eleitores está a ser
utilizado para servir o propósito menos nobre de introduzir no
sistema eleitoral elementos de desproporcionalização que
conduzam à obtenção na prática dos efeitos bipolarizadores
típicos dos sistemas maioritários.