Em justíssima homenagem à Diva

Por Francisco Costa



É provável que os leitores se recordem de que, quase um ano após terem sido nomeados pelo «novo» poder político, os novos responsáveis pelo serviço público de televisão acabaram por elaborar finalmente as suas grelhas de programas para a RTP 1 e para a RTP 2. Em relação a esta última - pese embora a circunstância de, em geral, lhe podermos atribuir qualidades que, em casos desesperados, funcionam como refúgio e alternativa ao «lixo» que empesta os restantes três canais «generalistas» existentes entre nós - não deixou de verificar-se, entre outros, um erro de opção básico, pelos reflexos negativos directos e indirectos que veio a provocar. Refiro-me à «obrigatoriedade» assim assumida de transmitir nos dias úteis, no período nobre da emissão, entre as 22.30 e as 24 horas, ciclos de cinema subordinados ao título «Cinco Noites, Cinco Filmes».


Não quer isto dizer que a existência de ciclos regulares de cinema, até mesmo sujeitos a tema como acontece no caso vertente, seja algo de indesejável - antes pelo contrário - embora os mesmos pudessem (e devessem) ter uma frequência e uma regularidade mais espaçadas no tempo, até como legítima defesa em relação à previsível dificuldade da sua manutenção com uma oferta de filmes minimamente dignos de ser neles incluídos; e não, como tem por vezes acontecido, levando à «invenção» forçada de ciclos nos quais seja possível encaixar produtos de contraditória e polémica qualidade, que ali figuram até como corpos estranhos ao espírito de rigor que se supunha presidir a essa estratégia no campo da programação cinematográfica.

Entretanto, o problema é que, independentemente dos aspectos positivos referidos, as consequências negativas são de vária ordem: por um lado, tal opção roubou flexibilidade à programação, sempre exigível a um canal com estas características; essa falta de poder de manobra e escolha, empurrou necessariamente para as franjas extremas do horário (de menor audiência, portanto) outros programas de grande qualidade e eminentemente televisivos, o que não acontece com o cinema, que faria todo o sentido figurarem no horário nobre dos dias úteis e não apenas (quando tal acontece) demasiado cedo ou demasiado tarde ou (na melhor das hipóteses) ao fim-de-semana. É o caso do teatro, da ópera, do bailado ou de outras formas de arte e, inclusive, de programas de informação ou documentários especiais ou outras emissões elaboradas por exemplo para a comemoração de efemérides que logicamente seria desejável fossem vistas a horas decentes e não ingloriamente desperdiçadas, porque transmitidas ao princípio da madrugada.

Vem isto a propósito do 20º. aniversário da morte da grande cantora Maria Callas (que ocorreu anteontem) e em relação ao qual a RTP 2 nem sequer tinha previsto emissão especial que se visse! Isto é patente, por exemplo, na ausência de qualquer referência na programação constante do Boletim de Programação referente à semana de 15 a 22 de Setembro e elaborado com data de 8 (portanto, apenas uma semana antes!), disponível para a imprensa tarde e a más horas, como é habitual, e no qual ainda figurava para o final da emissão daquela data (a partir das 00.35) o habitual programa musical «A Noite com Jools Holland», da BBC.

Assim, o espectador mais atento ou que ainda passa os olhos pela imprensa só ficou a saber que a RTP 2 acabaria por arrastamento a sentir-se «obrigada» a substituir este último programa e comemorar aquela efeméride pela informação chegada aos jornais diários, mas transmitida de forma tão desinteressada e burocrática que ninguém poderia ficar a saber antecipadamente qual o conteúdo de um novo programa de que apenas se podia ler a muito vaga referência «Maria Callas - Uma homenagem comemorativa…». Nem sequer através da programação constante do «Teletexto» da própria RTP - um «novo» meio que esta jamais soube aproveitar com dinamismo, designadamente para este tipo de informações detalhadas ou correcções de última hora - alguém teve a ideia de acrescentar fosse o que fosse quanto ao teor da referida emissão! Ou seja, mais uma vez, não só a RTP visivelmente não previu com a necessária antecipação qualquer programa para a circunstância - demonstrando ir a reboque dos acontecimentos - como, ao remediar essa lacuna que seria verdadeiramente intolerável, o fez publicitando-o de forma insuficiente e inadmissível face ao interesse público.


Antes cedo que tarde: a alternativa

Sem falar já na emissão especial sobre a Callas que, desde o meio-dia até às cinco da tarde (e, depois, continuada à noite), a RAI Due transmitiu há dois dias, não se estranhe assim que hoje nos ocupemos de uma outra emissão especial que, em mais uma das suas cuidadíssimas e já célebres noites temáticas, o canal franco-alemão «Arte» (via-TV Cabo) realizou no passado Domingo, com a duração de quatro horas e meia (!) e dedicado à grande cantora. (Aliás, a hora de fecho desta edição impediria, em qualquer dos casos, a análise crítica do tal misterioso e incógnito programa que a RTP 2 arranjou à última hora).

Não se pense que foi exagerado o tempo de emissão dedicado a este tema e a esta inesquecível personalidade do canto lírico. É que, organizada como sempre em diversos módulos, poupando apesar de tudo a «conversa» pretenciosa e demorada e previligiando a divulgação de documentos de arquivo habilmente tratados em forma de programas com conteúdos específicos ou indo buscar gravações históricas para nos dar a entender a singularidade e importância da mulher e da artista, a emissão do «Arte» foi exemplarmente produzida, conduzida, realizada, e (aspecto importante entre os demais) pós-produzida, já que se tratava de fazer conjugar objectos audiovisuais de origens e características muito diversas que pudessem constituir um puzzle suficientemente diversificado e atraente para despertar o entendimento multifacetado de uma personalidade com um percurso cívico e artístico tão excepcional, porque também não isento de polémica e contradições internas.

Quem poderia supor, por exemplo, que um dos módulos do programa - uma «discussão» de 56 minutos, subordinada ao título «Escutar Callas», e que colocava em estúdio sete personalidades dando a sua opinião sobre algumas das imortais gravações da soprano (uma emissão que, à partida, se diria tipicamente radiofónica) - poderia resultar num excelente programa de televisão?! Por um lado, a inclusão deste módulo veio sublinhar a importância dessa perspectiva de valorização e transmissão pedagógica da opinião abalizada de especialistas, precisamente ao contrário do que se faz em todos os canais televisivos portugueses de onde praticamente desapareceram investigadores, cientistas, críticos, pensadores nacionais, mais parecendo que, para os responsáveis televisivos, ninguém parece existir na cultura portuguesa que seja capaz de pensar e fazer despertar a disponibilidade de fruição inteligente dos espectadores. Por outro lado, independentemente de naquele estúdio estarem presentes sete interessantes, polémicos e habilitados conversadores, tudo estava rodeado de «condimentos» visuais que supriam a eventual «aridez» do tema, risco possível pela esmagadora presença da «palavra». Por exemplo, através de uma realização nada estática e quase sempre «em redondo», eram aproveitados como elementos cenográficos por detrás dos intervenientes ou colocados em primeiro plano numa teia translúcida que, ao mesmo tempo, os deixava descobrir jogando com o foco e a profundidade de campo - integrando-os num todo - enquadramentos admiráveis do belíssimo rosto anguloso e inesquecível da Callas, em espantosas fotografias de Roger Pic. Um achado!


As palavras e a música

Para se ficar com a (pálida) ideia de como uma televisão adulta pode abordar uma personalidade tão rica, basta dizer que (para além desta mesa-redonda) figuravam no conjunto da emissão outros cinco módulos fascinantes e extremamene ricos na sua forma e conteúdo que privilegiavam a abordagem da profunda importância artística da Callas, como um ser único, a um tempo intérprete e criador, mas também o resultado prático e as inúmeras demonstrações artísticas existentes desta faceta.

O primeiro módulo, «Paixão Callas», abordava através de testemunhos de vários críticos, artistas, docentes ou pessoas que directa ou indirectamente estiveram ligados à cantora, a sua personalidade forte e ambiciosa, mas também os seus fraquejos e vulnerabilidades. Aproveitando nalguns casos documentos inéditos, uma perspectiva importante desse módulo foi entretanto fundamental: dar a conhecer Callas através das suas próprias opiniões.

Seguiram-se 45 minutos verdadeiramente históricos e insubstituíveis do ponto de vista estritamente musical: a retransmissão integral, numa gravação da BBC, do segundo acto da «Tosca» de Puccini levada à cena no Covent Garden em 64, com Tito Gobbi (!) e Renato Cioni, numa encenação de Zeffirelli.

Outro momento impressionante, pela frontalidade implacável das opiniões emitidas, foi aquele em que a actriz Laura Betti, amiga pessoal de Pasolini e presidente da Fundação ligada à memória deste, abordava a infeliz (e única) experiência cinematográfica de Maria Callas no filme «Medeia» daquele realizador - um curtíssimo módulo de 15 minutos em que o fabuloso achado foi a montagem de excertos da versão operática de «Medeia» (de Cherubini), através dos quais a Callas como que «respondia», na prática, às opiniões de Betti!

Mais rebuscado e um pouco intelectualóide (mas espelho admirável da inconformista criatividade artística de uma época de espantoso frenesim, 1968), foi o também curto módulo construído sobre excertos de «Mona Lisa», um filme experimental realizado a partir da montagem de fotos da Callas e do famoso quadro de Da Vinci por um apaixonado admirador (e comprovado conhecedor) da arte da cantora: o realizador e encenador alemão Werner Schroeter.

Finalmente, «Maria Callas, Um Concerto Ideal», agora mais compreensível pela variedade de abordagens que haviam transparecido dos módulos anteriores, foi o digno culminar de toda a emissão, com actuações ao vivo da Callas em concertos ou récitas excepcionais, de que destaco: «A Grande Noite de Ópera», realizado na «Ópera de Paris» em Dezembro de 58 pela televisão francesa com a participação do fabuloso George Prêtre; excertos de dois concertos em Hamburgo realizados pela televisão alemã (Maio de 59 e Março de 62); excertos do programa «Os Grandes Intérpretes» conduzido por Bernard Gavoty para a televisão francesa em Maio de 65 e, finalmente, três fragmentos filmados da actuação de Maria Callas no Teatro de S. Carlos em Lisboa na «Traviata» de Verdi , em Março de 58.

É certo que, na época, os meios técnicos da RTP não se comparavam com os das outras televisões já implantadas há mais tempo. Por isso, os curtos e incompletos excertos filmados com uma única câmara (!) a que obrigava a duração dos «magazins» de 16 mm das Arriflex da época, bem como a pobrezinha zoom que pouco menos dava do que para um «plano apertado» do palco do S. Carlos (filmado, de longe, do camarote central onde Américo Tomaz habitualmente dormitava), dava a exacta medida da periferia e pequenez a que estávamos condenados.

Apesar de tudo, foi bom ver no genérico final da longa emissão do «Arte» o nome da RTP como um dos arquivos consultados. Enfim, pobrezinhos mas honrados!