Como um adepto das ideias liberais
se desilude
com o liberalismo na economia…

Por Lino de Carvalho



Acabei de ler um interessante livro, recentemente editado em França. Chama-se «Le Retour de Terre de Djid Andrew - Critique de la Raison Capitaliste» (O Retorno à Terra de Djid Andrew - Crítica da Razão Capitalista), escrito por Jean-François Kalin. É um romance histórico, uma ficção baseada na realidade económica e social do planeta, com uma imensidão de dados concretos sobre as consequências das políticas capitalistas neoliberais.


1. A história-ficção tem um enredo curioso. Em 1996, no planeta Saturno, onde os sociais-democratas austríacos, fugindo do nazismo, construíram uma sociedade fundada numa economia mista, o famoso romancista Djid Andrew foi incumbido, face aos pedidos e pressões do partido liberal da oposição de que ele é simpatizante, visitar o planeta Terra, inteiramente entregue à lógica capitalista, para testemunhar as virtudes da economia neoliberal. Djid consagra um ano inteiro à descoberta do velho mundo percorrendo todos os continentes. Face ao desastre com que depara e que põe em causa a lógica capitalista neoliberal, e os seus sonhos de igualdade e justiça social Djid decide, no retorno a Saturno, escrever um relatório recheado de informações concretas que ferem de morte as apregoadas virtudes do capitalismo.

2. Começou, como não podia deixar de ser, pelos EUA para onde partiu com a ilusão de uma sociedade de bem-estar lida (como no Portugal de Guterres) através dos indicadores macro-económicos: somente 5,2% de taxa de desemprego, défice orçamental reduzido a I,4% do PIB; uma inflação baixa, um crescimento sereno, índices da Bolsa que em dois anos (l995-1996) aumentaram de 71%, permitindo encaixes suplementares de lucros na ordem dos 2300 mil milhões de dólares, traduzindo o que os porta-vozes oficiais chamavam uma boa saúde ou um êxito excepcional da economia americana.
Mas o que foi encontrar Djid mergulhando na realidade? Um desemprego quatro vezes maior (mais de 20%) do que proclamavam os dados oficiais; que 40 milhões de trabalhadores, em 1996, não tinham qualquer cobertura social, que o número de crianças pobres saídas dos meios operários tinham aumentado, em vinte anos, 64% enquanto que o número de crianças dependentes da ajuda social só tinham aumentado em 25%; que o poder de compra dos trabalhadores pagos com salário mínimo tinha baixado, entre 1979 e 1996, 30% estando ao nível dos anos 1950 apesar dos incrementos da produtividade; que nos últimos anos o rendimento médio dos 20% mais pobres tinha diminuído 12%.
Nenhum dos especialistas neoliberais consultados por Djid tinha sequer sonhado em interligar a relativamente fraca taxa oficial de desemprego americana (explicado com base em manipulações estatísticas, em reduções reais de salários, numa «criação de empregos precários» em áreas de serviço social e outros sectores não produtivos extremamente mal remunerados e numa política laboral de extrema mobilidade dos trabalhadores, obrigando-os a percorrer o país à busca de emprego, longe da família e da sua residência), a baixa absoluta do poder de compra dos salários e a taxa recorde de criminalidade. Foi então que percebeu como estava a ser liquidado o valor económico e social do trabalho com os salários reduzidos ao mínimo e os sindicatos sem natureza de classe. Como as actividades criminosas estavam a tomar o lugar deixado pela ausência de trabalho dotado de um real conteúdo socioeconómico. Como a taxa de criminalidade tinha atingido níveis gigantescos com 1 milhão de pessoas na prisão e 500 000 crianças lançadas na prostituição. Como o debate político estava reduzido a um espectáculo, com o Presidente Clinton a ser eleito unicamente por 20% dos sufrágios dos cidadãos em idade de votar e os grandes interesses financeiros das rnultinacionais a ditarem a política económica e comercial.

3. Perturbado, o nosso Djid rumou para o Reino Unido onde, em Saturno, o partido liberal que tinha garantido que o «modelo liberal» tinha assegurado «o crescimento para todos» como o confirmavam as médias abstractas do salário médio, do crescimento, da taxa de inflação, do desemprego. Mas, também aqui, novo murro no estômago de Djid. Afinal, as médias dissimulavam que os rendimentos dos 10% de ingleses mais pobres tinham diminuído 13% em 13 anos enquanto os mais ricos tinham aumentado 62%. Ausência de salário mínimo. Nenhum limite do tempo de trabalho. Os direitos à protecção social, à representação sindical ou a férias pagas sem garantia legal. Contratos a prazo renováveis infinitamente. Aumento do número de ingleses a viverem abaixo do nível de pobreza de 5 milhões em 1979 para 13 milhões em 1996. Eram as próprias estatísticas oficiais a afirmarem que 3,8 milhões de assalariados trabalhavam mais de 48 horas por semana, que 2,5 milhões não tinham férias pagas e 4,1 milhões só beneficiavam de três semanas de férias por ano. Eis a razão, descobre Djid, do «milagre» inglês baseado neste tipo de vantagem comparativa fazendo do Reino Unido terra de eleição dos capitais americanos e asiáticos.

4. Djid rumou então ao encontro dos «dragões» asiáticos onde de 1960 a 1993 o seu peso na economia mundial com base na relação entre a produção desses países e a produção mundial, medida através dos respectivos PIB'S, tinha passado de 18% para 34%.
A primeira constatação do nosso Djid foi que, contrariamente ao que ele e o partido liberal de Saturno pensavam, o enorme crescimento dos países asiáticos não foi conseguido através do funcionamento dos chamados mecanismos de mercado livre, mas através de uma fortíssima intervenção do Estado «violando» as tão apregoadas regras da livre concorrência por razões político-ideológicas. Isto é, «porque a China tinha, desde 1949, um regime comunista e a teoria dos dominós fazia temer aos EUA e a todo o sistema capitalista que o marxismo-leninismo se estendesse a toda a Ásia sendo, por isso, necessário, a todo o preço, uma montra atraente que mostrasse ao conjunto do Continente que a economia de mercado era superior à economia centralmente planificada».
Apesar deste entorse ao seu sonho liberal, certas estatísticas punham Djid a sonhar, por exemplo, a produção real por habitante em Singapura era maior que nos EUA e a de Hong-Kong maior que a da França.
Mas o que ele, afinal, constatou também aqui foi que esta «riqueza teórica por cabeça, não tinha nenhuma relação, mesmo longínqua, com o rendimento real da população».
Porque, neste como noutros países do Sudeste Asiático, os aumentos enormes do produto global desses países era feito «à custa de uma mão-de-obra eficiente, com trabalho duro, barato e sem cobertura social», só possível devido, entre outros aspectos» a «regimes políticos autoritários e coloniais». A Coreia do Sul parecia ser uma excepção - essencialmente por razões políticas tendo em conta os vizinhos do Norte e, desde logo, se verificava que a Coreia do Sul em vez de ser um espaço de deslocalização estava ela própria a deslocalizar empresas para a Grã-Bretanha por causa do custo da mão-de-obra.
Mas mais. As enormes mais-valias geradas nos países asiáticos afinal vão, no essencial, para uma oligarquia local de tal modo que dos 11 empresários mais ricos do mundo em 1995, havia um coreano, um outro de Taiwan e dois de Hong-Kong. Na Corela do Sul, por exemplo, a economia tinha caído nas mãos de trinta grandes companhias e conglomerados, dirigidos pelas respectivas famílias fundadoras, que decidem a chuva e o bom tempo e dominam o poder político, enquanto 14 000 pequenas e médias empresas, só em 1995, tinham declarado falência.

5. Djid não veio a Portugal. Mas se viesse poderia, seguramente, surpreender-se com o mesmo tipo de constatações.
E aqui talvez lhe bastasse ler algumas entrevistas dos patrões da indústria. Por exemplo, o presidente da filial portuguesa da Siemens. Perguntado sobre quais as vantagens de Portugal como receptor de investimento não hesitou. Resposta: Portugal «tem a mão-de-obra mais barata da União Europeia, com preço atractivo e facilmente adaptável a todas as tecnologias e métodos modernos de gestão...».
Ou o Presidente da Bayer que referindo-se à falta de criação de empregos na Alemanha - e noutros países da União Europeia - afirmava numa entrevista divulgada por um quotidiano português que «a situação melhoraria consideravelmente os que têm emprego renunciassem voluntariamente a uma parte das regalias sociais. Seria uma questão de solidariedade».
E quando o jornalista lhe perguntou por que não deveria ser a Bayer a renunciar às tão elevadas taxas de lucro obtidas, contentando-se, por exemplo, em conseguir taxas de 10% respondeu que era impossível porque os seus concorrentes, como a Hoffman La Roche na Suíça, têm taxas de lucros, após impostos, da ordem dos 20% e que num mundo em globalização «só os grandes podem sobreviver. O elemento social fica para trás».
E seguramente também não lhe seria difícil encontrar em Portugal defensores das mesmas teses que ouviu de um economista americano, Gary Becker, Prémio Nobel da Economia, porta-voz dos neoliberais que, perguntado por Djid sobre qual a política económica ideal, respondeu de imediato: «É preciso desregulamentar rapidamente o mercado de trabalho e diminuir fortemente o salário mínimo. É preciso reduzir o sector público através de um programa massivo de privatizações incluindo a Segurança Social que é preciso substituir por "fundos de pensões" de modo a aumentar, a acumulação do capital ...» Teses que seguramente também lhe seria possível ouvir em Portugal, no PS de Guterres, porventura embrulhadas num discurso mais social-cristão, com algumas inclusivamente a serem postas em prática ou com fortes tendências para isso: política de privatizações, livro verde da Segurança Social, pressões para a alteração da legislação laboral são alguns dos exemplos concretos.

6. O livro, pelo qual acabo de fazer uma breve e superficial viagem (ele tem quase 600 páginas e aborda muitas outras questões) não é isento de contradições. Mas é um livro que vale a pena ler, porque é necessário lutar, como afinal constatou Djid contra as suas próprias ideias iniciais, contra um sistema cuja lógica põe em causa «o trabalho enquanto valor central e fundador da sociedade», «a felicidade colectiva dos cidadãos enquanto finalidade de vida», «a pessoa, avaliada agora somente em termos de custos e reduzida a não valer mais que a sua produtividade marginal», e promove um «individualismo radicalmente despersonalizado». Afinal, como desiludido, conclui Djid: «a lei do mercado não é mais do que uma lei que o capital impõe ao mercado».


«Avante!» Nº 1245 de 9 de Outubro de 1997