EDITORIAL

Os números e as pessoas



A
inda nos lembramos todos das tiradas e dos dísticos propagandísticos do PS, quando era oposição, a asseverar que «as pessoas não são números» e que um governo seu daria « prioridade às pessoas, não aos números». Foi no tempo em que combatia, ao lado dos comunistas, a utilização manipulada das estatísticas pelos governos de Cavaco Silva, para fabricarem o «oásis» virtual ou disfarçarem as consequências ruinosas da sua política.
É chocante ver como, uma vez chegado ao Governo, o PS passou, também neste aspecto, a seguir exactamente os métodos cavaquistas, pretendendo calar as críticas às insuficiências, erros e injustiças da sua governação, especialmente no plano social, com a proclamação das «performances» macro-económicas criadas pelas suas estatísticas.
Desmistificando estas «engenharias contabilísticas» com que a propaganda governamental se enfeita, Carlos Carvalhas salientou, ao discursar nas Jornadas Parlamentares do PCP, em Faro: «Os trabalhadores e os reformados e milhares e milhares de famílias não sentem as melhorias desses valores estatísticos, nem em relação aos aumentos reais do poder de compra, nem em relação aos valores da inflação, nem em relação aos salários ou a melhores perspectivas de futuro.»
Estas observações revestem uma ainda maior oportunidade no momento em que propaganda governamental se lança numa nova campanha a partir das «previsões de outono» da Comissão Europeia sobre o «excelente comportamento» da economia portuguesa em relação aos critérios de convergência nominal e em relação às dotações sociais do Orçamento para 1998.
A propaganda não esclarece, claro, que as previsões nem sequer são pacíficas na Comissão, nem foram submetidas ao colégio dos comissários e que um porta-voz da Comissão «avisou contra toda e qualquer interpretação política das previsões», como informa o «Diário Económico», da passada terça-feira.
Além disso, coincidindo com a sua divulgação, soube-se que o Instituto Monetário Europeu não vai publicar, como é habitual, o seu relatório de Novembro sobre a política de convergência económica dos Quinze, com a alegação de que «não é preciso perturbar os mercados».
Há então todas as razões para encarar com sobriedade o que pode tratar-se de previsões de conveniência, em vésperas de importantes decisões sobre a moeda-única, e não para embandeirar em arco, como estão a fazer os propagandistas do Governo PS.

Acresce que, como temos salientado, o cumprimento dos critérios de convergência de Maastricht pelo nosso país não traduz uma situação de desafogo ou sequer de melhoria das condições de vida por parte de nosso povo. Muito pelo contrário, é o resultado dos sacrifícios que lhe têm sido impostos, primeiro pelo PSD apoiado pelo PS e depois pelo PS apoiado pelo PSD.
Acontece que ao mesmo tempo que tem convergido com os outros estados membros da União Europeia nas percentagens do défice orçamental, da inflação e da dívida pública, não o tem feito em termos de efectivo crescimento económico e até tem divergido deles, agravando o fosso, no nível de salários, de reformas, de benefícios da segurança social e, em geral, na participação do trabalho no rendimento nacional.
Com toda a razão os dirigentes da CGTP têm insistido em face da gabarolice do Governo com os bons resultados da sua política económica, que havendo efectiva melhoria da economia então ela deve beneficiar justamente os rendimentos do trabalho que têm sido sacrificados ao longo dos últimos anos.
Entretanto, o que se ouve não só da parte do grande patronato, mas dos governantes do PS, também, é que, ao mesmo tempo que se regozijam com as previsões outonais da Comissão Europeia, logo recomendam cuidado com os aumentos salários que podem estragar as belas previsões.
As miseráveis proposta que o Governo tem apresentado nas negociações com a Função Pública para os aumentos de salários para o próximo ano e que servirão de referência para a contratação colectiva aí estão como o testemunho mais concreto desta filosofia.
O que o Governo tem privilegiado são os números da convergência nominal imposta pela moeda única, as pessoas pouco lhe têm interessado a não ser como representando salários, vencimentos e pensões que podem prejudicar os números ou os podem favorecer enquanto mão-de-obra explorada e pagadores de impostos.

O fogo de artifício da propaganda dos números conhece agora um momento especialmente feérico com a apresentação pelo Governo do Orçamento de Estado para 1998.
Em vésperas de eleições autárquicas e tendo perdido na tentativa de atirar a aprovação do Orçamento para depois das eleições, o Governo acaba de proclamar significativos aumentos das dotações para as funções sociais e as autarquias.
O pendor propagandístico destes anúncios e o facto de já haver contradições nos números adiantados, por exemplo, em relação à saúde recomendam a maior reserva na sua aceitação.
Além disso, há sempre o risco do orçamentado, nomeadamente no que toca a despesas de investimento, não ter, no final do ano, nenhuma correspondência com o executado, como tantas vezes tem acontecido.
O líder parlamentar do PCP, Octávio Teixeira, recomenda a propósito, num comentário ao nosso jornal: «sendo mais um Orçamento para adesão à moeda única, será prudente não termos ilusões sobre as suas orientações e objectivos essenciais».
Aliás, as Jornadas Parlamentares do PCP, realizadas no passado fim-de-semana tinham feito duas exigências em matéria orçamental que são dois bons critérios para adequar os números aos interesses das pessoas: a primeira, reclama uma forte redução do benefícios fiscais, que rondam os 200 milhões de contos e só beneficiam os grandes interesses capitalistas; a segunda reclama, uma redução visível do IRS que incide sobre os rendimentos do trabalho, atenuando o escândalo de serem praticamente estes rendimentos que pagam o grosso dos impostos e suportam a carga fiscal.
A resposta do Governo é claramente não à primeira exigência e parece ser largamente negativa em relação à segunda, acrescendo, em matéria de IRS, que o Governo se propõe rever as deduções, por exemplo, com as despesas de saúde.
Apesar das receitas que tem obtido com a almoeda das empresas públicas, feita através das privatizações, há muito para esclarecer em relação aos «milagres» do presente Orçamento.

Bem gostaríamos que fosse um Orçamento feito para as pessoas, mas receamos que mais uma vez seja um Orçamento feito para os números e, ainda pior, para obter efeitos eleitoralistas imediatos, que adiante se pagarão com maior dureza.


«Avante!» Nº 1246 - 16.Outubro.1997