Mercantilização
da saúde
está a acentuar-se
afirma
Edgar Correia
O estabelecimento de um Plano de
Emergência, no sentido de resolver os problemas da
acessibilidade aos centros de saúde e unidades hospitalares, é
a primeira das quatro medidas prioritárias que o PCP defende
para a alteração da situação no Serviço Nacional de Saúde.
Apesar de alguma valorização pelo Governo PS do papel do SNS, e
dos propósitos enunciados na «estratégia nacional de saúde
para 1997» - que em termos gerais acompanha -, o PCP considera
que, em termos concretos, muito pouco foi
alterado no rumo que vinha a ser seguido no sector pelos governos
anteriores. O quadro geral é, pois, de degradação do SNS,
salvaguardados que sejam os empenhados esforços
de muitos dos seus profissionais, algumas medidas pontuais e as
diferenças que naturalmente existem de centro para centro.
Em conferência de imprensa, realizada na quinta-feira passada no
Centro de Trabalho da Soeiro Pereira Gomes, Edgar Correia, membro
da Comissão Política do PCP divulgou a análise dos comunistas
à política desenvolvida neste dois anos de governo socialista e
as medidas estratégicas que podem concretizar uma
profunda reforma de orientação democrática no SNS.
Urge alterar a situação
Afirmou Edgar Correia:
«Se há sector da vida nacional que se
destaca pela sua importância na vida da população portuguesa e
pelo grau de insatisfação que lhe cria no que respeita às
condições de funcionamento de muitos dos seus serviços, esse
sector é sem dúvida o da saúde.
Dois anos decorridos desde a tomada de posse do actual Governo,
as expectativas existentes quanto à efectiva melhoria da
prestação de cuidados de saúde e quanto à alteração do rumo
que vinha a ser seguido pelos governos anteriores, foram
defraudadas. A situação no Serviço Nacional de Saúde (SNS)
continua a degradar-se, quando avaliado no seu conjunto. E não
se observam nos responsáveis pelo Ministério da Saúde nem
opções políticas claras quanto à efectiva defesa e
modernização do SNS, nem capacidade de concretização dos
propósitos genéricos enunciados - como os constantes da
"estratégia nacional de saúde para 1997 " - que
haviam sido merecedores de apoio.
Apesar da adopção recente de algumas medidas de carácter
pontual, a acessibilidade aos centros de saúde e unidades
hospitalares continua a constituir um gravíssimo problema - com
falta de médicos de família, enfermeiros e outros técnicos,
inadmissíveis listas de espera, atrasos no atendimento de
utentes (mesmo quando portadores de doenças graves), e
acentuadas discriminações de natureza classista.
A prioridade aos Cuidados Primários de Saúde não foi
concretizada. E a prestação de cuidados de saúde de qualidade
continua a ser um objectivo longínquo, apesar de medidas
pontuais e do empenhado esforço de muitos dos profissionais do
Serviço Nacional de Saúde.
Os portugueses pagam pela saúde directamente do seu bolso cada
vez mais, para além do que desembolsam através dos impostos
(por isso a percentagem dos gastos públicos em relação ao
total da despesa com a saúde não ultrapassava os 55.5% em
1993). E são conhecidos propósitos oficiais para acentuar a
mercantilização da saúde, o que conduzirá em linha recta ao
agravamento deste quadro.
Dois traços negativos
De acordo com a avaliação do PCP na acção do Ministério da Saúde sobressaem dois traços negativos fundamentais:
Primeiro: a cedência às pressões dos grandes interesses instalados no sector - multinacionais dos medicamentos e dos equipamentos, sector convencionado dominado pelos monopólios da hemodiálise e das análises clínicas, grandes construtores civis - que repartem entre si o grosso dos recursos públicos.
E, segundo: a manutenção, praticamente inalterada, da herança política neo-liberal de uma década de governos do PSD e das suas traves mestras legislativas (designadamente da Lei de Bases, Estatuto do SNS e decreto-lei da Gestão Hospitalar).
A pressão dos grandes interesses e a
retomada de iniciativa por parte dos sectores neo-liberais (que
apostam na privatização da saúde, na destruição do SNS tal
como está constitucionalmente consagrado e na sua
transformação num sistema mínimo e assistencialista para a
população mais pobre) estão a agravar as contradições
internas no Ministério da Saúde e a minar os propósitos de
quantos afirmam pretender a defesa e a modernização do Serviço
Nacional de Saúde.
É o caso da política do medicamento em que ressaltam as
vultuosíssimas concessões feitas pelo Governo aos interesses
que dominam o sector, de que é exemplo o ruinoso acordo
celebrado há meses com a APIFARMA, onde prevaleceram os
interesses das multinacionais farmacêuticas. Agravado pelo
abandono de políticas que permitiriam uma significativa
racionalização dos gastos neste sector e a diminuição dos
encargos suportados pelos utentes, para além da moralização de
todo o circuito de comercialização - prescrição,
designadamente através da utilização dos genéricos, da
elaboração de um Formulário Nacional para o ambulatório e do
desenvolvimento de funções farmácia nas unidades do SNS.
São os acordos mantidos com o sector da medicina convencionada e
que salvaguardam os ilegítimos privilégios privados
construídos à sombra da subutilização dos recursos e das
potencialidades do Serviço Nacional de Saúde.
É a política de restrições financeiras e funcionais em
relação a unidades do SNS - nomeadamente dos cuidados de saúde
primários - em flagrante contraste com as concessões feitas aos
sectores privados que repartem entre si o fundamental dos
recursos do sector.
É a linha da crescente desresponsabilização do Estado na área
da saúde , consubstanciada na proposta do Ministério da Saúde
de alteração do estatuto jurídico dos hospitais públicos, de
modo a transformá-los em empresas públicas e a tornar possível
a sua privatização parcial ou total (como a Ministra da Saúde
explicitamente admitiu na esclarecedora recente entrevista que
concedeu ao "Independente") e do estabelecimento de um
sistema de contratação individual dos seus profissionais.
É certo que sobre os hospitais públicos, do mesmo modo que
sobre os centros de saúde e sobre o SNS no seu conjunto, incidem
pesados constrangimentos de natureza burocrática,
administrativa, organizativa e funcional.
Mas esses constrangimentos podem e devem ser ultrapassados sem
pôr em causa a natureza pública dos serviços de saúde,
garante fundamental da concretização do direito à saúde
constitucionalmente consagrado.
É nesse sentido que importa empreender uma profunda reforma de
orientação democrática como aquela cujas orientações
estratégicas e principais medidas o PCP apresentou ao país. E
que urge também aprovar novas leis sobre a direcção e a
gestão dos serviços de saúde e do SNS no seu conjunto e sobre
o seu financiamento, e alterar as disposições privatizadoras
que constam da Lei de Bases e do Estatuto do SNS.
Quatro medidas políticas urgentes:
O PCP considera que se impõe alterar a situação no Serviço Nacional de Saúde.
Tendo como referência programática a concepção global da reforma democrática dos serviços de saúde e as cinco orientações estratégicas que a concretizam desgovernamentalização, descentralização, autonomia e financiamento suficiente do SNS; promoção da eficácia do SNS; gestão democrática e participada pelos trabalhadores de saúde e pelas populações; avaliação da qualidade em saúde; humanização dos serviços; - a Comissão Nacional para as Questões da Saúde do PCP assume a adopção das seguintes medidas políticas prioritárias:
1ª Estabelecimento de um plano de emergência em relação aos problemas de acessibilidade aos centros de saúde e unidades hospitalares, que ponha termo a inadmissíveis listas de espera e atrasos no atendimento de utentes, designadamente através da adopção de medidas de carácter extraordinário até à normalização funcional da resposta dos vários serviços; aproveitamento da capacidade instalada do SNS, alargamento do funcionamento horário das consultas externas, dos blocos cirúrgicos e dos meios complementares de diagnóstico; introdução imediata de um sistema de financiamento das unidades de saúde que tenha como base a quantificação dos serviços prestados; abolição das "taxas moderadoras".
2ª Concretização de um pacote de medidas urgentes em relação aos medicamentos: congelamento dos preços e não elevação da comparticipação por parte dos utentes; efectiva introdução dos medicamentos genéricos, aprovação de um Formulário Nacional para o ambulatório (a exemplo do que já existe a nível hospitalar) e desenvolvimento da função farmácia nas unidades do SNS, o que limitaria extraordinariamente a promoção que as multinacionais vêm fazendo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos, e permitiria uma racionalização de despesas da ordem das muitas dezenas de milhões de contos.
3ª Aprovação de uma nova lei de
direcção e gestão democráticas dos serviços de saúde,
que desgovernamentalize o sector e substitua progressivamente os
mecanismos de comando burocrático administrativo central por
processos de autonomia e de auto-regulação democrática em que
concorram e se equilibrem os poderes da tutela, das comunidades
servidas pelos serviços e dos profissionais de saúde.
A aprovação desta nova lei envolve a revogação do decreto-lei
cavaquista da gestão hospitalar e a alteração dos articulados
de inspiração privatizadora e neo-liberal que constam da Lei de
Bases e do Estatuto do SNS.
O PCP irá apresentar proximamente os seus próprios projectos de
lei relativos à Direcção e Gestão dos Serviços de Saúde,
contemplando nomeadamente a sua regionalização, e ao
Financiamento do SNS.
4ª Criação do Instituto de Avaliação da Qualidade dos Serviços de Saúde, com carácter público, dirigido por especialistas de reconhecido mérito técnico e científico, de forma a atestar mediante avaliações periódicas a qualidade do exercício dos serviços e estabelecimentos de saúde.