TRIBUNA

O Governo PS e o direito de asilo
Mudar a lei
para que tudo fique na mesma

Por António Filipe



Quando se esperava, a avaliar por tudo o que se disse e escreveu, que o Governo PS se propusesse alterar o que de pior foi feito pelo PSD em matéria de direito de asilo, eis que aparece na AR uma proposta de lei que tem como objectivo mudar algumas coisas para que tudo fique na mesma. Sempre em nome de um "amplo consenso nacional" que não é mais que o acordo entre o PS e o PSD.


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Lembrar-se-ão ainda muitos leitores de que em Agosto de 1993 a matéria do direito de asilo teve honras de primeira página. O PSD, com a maioria absoluta de que então dispunha na Assembleia da República, fez aprovar uma nova lei sobre direito de asilo, alterando a que vigorava desde 1980. O objectivo do PSD era muito claro: Tratava-se de adoptar em Portugal uma legislação relativa ao reconhecimento do direito de asilo e do estatuto de refugiado que viesse de encontro às orientações ditadas pelos países dominantes do chamado processo de "construção europeia". Assinados os Acordos de Schengen e a respectiva Convenção de Aplicação, a Convenção de Dublin e o Tratado de Maastricht, como peças basilares da edificação de uma "fortaleza" xenófoba europeia, empenharam-se os países signatários em alterar as respectivas legislações nacionais por forma a limitar de forma drástica as possibilidades de reconhecimento do direito de asilo em países da União Europeia.

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Este processo de alteração legislativa não foi pacífico em Portugal. Uma primeira tentativa governamental de alterar a lei de asilo com recurso a uma autorização legislativa foi vetada pelo Presidente da República que, na mensagem que dirigiu à AR, chamou a atenção para as especiais responsabilidades do nosso país em "contrariar e prevenir, com serenidade e firmeza e com sentido humanitário, as tentações de chauvinismo e xenofobia que se vão manifestando no velho continente". Em resposta ao veto presidencial, Cavaco Silva fez da questão do direito de asilo pretexto para mais um episódio de guerrilha institucional, obrigando a Assembleia da República a reunir em pleno Agosto num cenário de crise artificial, com o ministro Dias Loureiro a recorrer a uma demagogia sem limites, fundamentando a alteração da lei de asilo na necessidade de conter a imigração ilegal.

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De qualquer modo, a maioria absoluta do PSD ditou a sua lei e reduziu drasticamente os direitos dos requerentes de asilo em Portugal. Praticamente todos os pedidos passaram a ser decididos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras através de uma forma de processo acelerado que não é mais do que um expediente administrativo para recusar, não apenas o asilo, mas até a apreciação do próprio requerimento. As razões humanitárias deixaram de ser atendíveis para efeitos de reconhecimento do direito de asilo, dando lugar quando muito a uma autorização de residência provisória a conceder pelo Governo. Foi negado o efeito suspensivo dos recursos interpostos da recusa de pedidos de asilo e foram negadas aos requerentes as garantias mínimas para poderem fazer valer os seus direitos.

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A lei aprovada pelo PSD foi contestada desde a primeira hora na Assembleia da República pelo PCP, pelo PEV, e também pelo PS. Recebeu a crítica de muitas organizações não governamentais: Do Conselho Português para os Refugiados; da Amnistia Internacional; da Obra Católica das Migrações; da generalidade do movimento associativo anti-racista. Suscitou, da parte do representante em Portugal do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados diversas iniciativas de sensibilização para a necessidade da sua alteração, por forma a garantir garantias mínimas para os requerentes de asilo. Não admira pois que logo no início da presente legislatura, o Governo PS tenha anunciado a alteração da lei de asilo como uma das suas prioridades, reafirmando compromissos assumidos em período pré-eleitoral.

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Não teve esta promessa eleitoral sorte diferente de muitas outras. Prioridade não houve. Quem apresentou um Projecto de Lei na Assembleia da República para alterar a lei de asilo, foi o PCP. Foi preciso esperar pela terceira sessão legislativa para que uma iniciativa do Governo pudesse ser debatida.
O problema porém não se ficou pelo atraso. Mais grave do que isso é a frustração das expectativas que foram sido criadas e alimentadas pelo PS quanto a uma alteração substancial da legislação que havia sido aprovada pelo PSD. É que, se há aspectos do regime legal vigente que o actual Governo se propõe alterar num sentido positivo, o que é facto é que a proposta de lei agora apresentada não se afasta, em aspectos cruciais, da matriz da lei que o PSD há quatro anos fez aprovar.
É verdade que no plano do apoio social aos requerentes a proposta de lei introduz alguns progressos; é certo que a questão do reagrupamento familiar é tratada em termos mais razoáveis; é verdade também que os recurso que sejam interpostos para o STA face a decisões que recusem o reconhecimento do direito de asilo têm efeito suspensivo automático.
Mas o que de fundamental resulta da proposta de lei do Governo PS é a manutenção em vigor de disposições legais que o PS havia criticado aquando da sua aprovação pelo PSD e a criação de novas disposições inaceitáveis. Senão vejamos:
Em primeiro lugar, o regime de processo acelerado previsto na lei do PSD é substituído na proposta de lei do PS por uma fase de admissibilidade do pedido, da competência do SEF, e que, tal como no processo acelerado, assenta em decisões discricionárias da parte dos serviços. Basta que o SEF considere que se verificam causas de exclusão "manifestas"; ou que as alegações do requerente são "destituídas de fundamento"; ou que o pedido é "claramente fraudulento", para que o requerimento não seja sequer admitido para apreciação.
Particularmente grave é o regime aplicável aos casos em que o pedido de asilo seja apresentado nos postos de fronteira, na sequência de entrada irregular no território nacional. Nesse caso, o SEF decide da admissão do pedido no prazo de 5 dias, e em caso de não admissão, pode o requerente pedir, em 24 horas, a reapreciação do caso pelo Comissariado Nacional para os Refugiados, que decidirá nas 24 horas seguintes. Só que, nestes sete dias, o requerente é obrigado a permanecer na zona internacional do aeroporto.
Quando nos lembramos das diligências que foram feitas pelos advogados José Vera Jardim (hoje Ministro da Justiça) e António Costa (hoje Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares) para conseguir o "habeas corpus" de uma cidadã de nome Vuvu Grace que se encontrava detida na zona internacional do aeroporto, parece inacreditável que seja o Governo de que ambos fazem parte, a apresentar uma proposta de lei que condena a esmagadora maioria dos requerentes de asilo a aguardar sete dias no aeroporto que haja uma decisão sobre se o seu requerimento é, ou não, apreciado.
Em segundo lugar, o Governo reconhece a importância de garantir a eficácia suspensiva automática do recurso que seja apresentado perante o STA, face à recusa do direito de asilo. Mas já não reconhece o mesmo efeito suspensivo aos recursos que sejam apresentados perante o Tribunal Administrativo de Círculo, face à decisão de não admissão do requerimento. Não é compreensível esta disparidade de critérios.
Em terceiro lugar, a proposta de lei continua a fazer depender o reconhecimento do direito de asilo, ou mesmo a admissibilidade do pedido, de critérios que não decorrem de qualquer consideração humanitária, mas antes de meras considerações de política externa, ou mesmo de oportunidade.
Em quarto lugar, a solução proposta pelo Governo para a composição do Comissariado Nacional para os Refugiados, é verdadeiramente abstrusa. Propõe o Governo que tal Comissariado seja composto por um Magistrado Judicial, um Magistrado do Ministério Público como adjunto do primeiro, e um licenciado em Direito com funções de assessoria. Os dois magistrados seriam nomeados pelo Governo mediante designação dos respectivos Conselhos Superiores. O terceiro seria simplesmente um "job" para mais um "boy" de nomeação governamental. Esta proposta suscita várias objecções. Primeira, a de que não é pelo facto de um órgão ser composto por magistrados que se torna independente. Os magistrados a integrar o comissariado não exercerão as funções de magistrados, mas de titulares de um órgão da Administração Pública. Segunda, a de que não é adequado que os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público sejam envolvidos na designação de membros que hão-de integrar órgãos a funcionar na órbita governamental. Terceira, a de que, sendo as magistraturas independentes, não se percebe porque é que o magistrado do ministério público há-de ser o adjunto do magistrado judicial.
Finalmente, é de lamentar que o Governo não aproveite esta iniciativa legislativa para retomar o bom princípio, eliminado em 1993, de que o direito de asilo pode ser reconhecido por razões humanitárias. Também neste caso o Governo PS segue integralmente as pisadas do PSD.

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Fica assim muito claro que as críticas contundentes que o PS fazia ao PSD em 1993 a propósito da alteração da lei de asilo não passavam afinal de gritaria para simular oposição. Não que essas criticas não fossem justas. Mas porque o PS, como aluno exemplar do fundamentalismo europeísta, nunca as sentiu como suas.
Com esta proposta de lei, a verdade vem ao de cima: As criticas contundentes ao PSD foram substituídas pelo objectivo de obter um "amplo consenso nacional", com o PSD. As promessas de alterações substanciais à legislação aprovada pelo PSD foram substuidas pela proposta de algumas pequenas mudanças destinadas a garantir que tudo fique na mesma.


«Avante!» Nº 1246 - 16.Outubro.1997