Campos de Refugiados Saharauis
(II)
O
renascer da esperança
Por Anabela Fino
Nos campos de
refugiados de Tinduf, alguém pergunta a um dos muitos miúdos
que rodeiam os visitantes: «O que queres ser quando fores
grande?». A resposta não se fez esperar: «James Baker!».
Pode parecer estranho, mas a verdade é que ex-secretário de
Estado norte-americano é hoje uma espécie de herói nacional
para os refugiados saharauis. Aparentemente, o caso não é para
menos. Em apenas três meses, James Baker, enquanto enviado
especial do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, conseguiu
retirar o processo de paz para o Sahara Ocidental do impasse em
que caíra há seis anos, fazer sentar à mesa das negociações
representantes do Governo de Marrocos e da Frente Polisário, e
levar as partes a assinar um acordo para a realização de um
referendo no Sahara. Um feito que não deixa de colocar algumas
interrogações. O que foi que mudou? Por que razão Marrocos diz
hoje aceitar o que rejeitou em 1991? Que cedências foram feitas
de parte a parte para esta mudança tão radical?
A Conferência Internacional de Apoio ao Plano de Paz no Sahara
Ocidental deu algumas respostas, mas não todas. E deixou alguns
alertas que é preciso não ignorar.
Qualquer tentativa de explicação do «fenómeno» Baker
exige uma rectrospectiva, breve que seja, da situação saharaui.
A luta pela independência do Sahara Ocidental data dos finais
dos anos cinquenta, mas a resistência só assume forma
organizada em Maio de 1973, data da criação da Frente
Polisário. Colonizado pela Espanha - que «adquiriu» o
território em 1884, na Conferência de Berlim -, o Sahara é
incluído pela primeira vez na relação das regiões a
descolonizar em 1963, e de então para cá já foi alvo de cerca
de quatro dezenas de resoluções das Nações Unidas
reconhecendo o seu direito à autodeterminação. Um direito que
muitos pensaram poder ver concretizado em 1975, dado a Espanha
ter aceite, no ano anterior, a realização de um referendo
patrocinado pelas Nações Unidas, e chegado mesmo a efectuar o
recenseamento da população saharaui.
Não foi isso que sucedeu: cobiçado pelos vizinhos a norte e a
sul, quer devido às suas riquezas em recursos pesqueiros e
fostatos, quer pela sua importância geoestratégica, o Sahara
viria a ser alvo, em Novembro de 1975, de um acordo secreto entre
a Espanha, Marrocos e a Mauritânia, em que se estipulava a
partilha do território por estes dois últimos.
Tempos de guerra
A guerra instala-se. Atacados
simultaneamente em duas frentes, os saharauis morrem aos
milhares. Marrocos, que então lança a famosa «Marcha Verde»
fazendo avançar centenas de milhar de marroquinos para o Sahara,
não hesita mesmo em utilizar napalm e fósforo contra as
populações indefesas, ao mesmo tempo que lhes destrói o gado e
envenena a água dos poços. Para escapar a esta autêntica
tentativa de genocídio, milhares de pessoas são forçadas ao
exílio no sudoeste da Argélia, outras procuram protecção nas
zonas controladas pela Polisário.
A Espanha abandona a ex-colónia em 1976. Coincidindo com a
retirada do exército espanhol, a Polisário proclama, a 27 de
Fevereiro, a República Árabe Democrata Saharaui (RASD). Cerca
de dois anos depois, um golpe militar na Mauritânia depõe o
Governo e faz alterar radicalmente a política do país face ao
Sahara. Em Agosto de 1979 é assinado um acordo de paz entre a
Polisário e as novas autoridades da Mauritânia, que vem
posteriormente a reconhecer a RASD.
A guerra prossegue com Marrocos, que ocupa a maior parte do
território. Na década de oitenta o rei Hassan II manda
construir vários muros, à medida que as suas tropas avançam no
terreno, para se defender da Polisário. Actualmente, as zonas
ocupadas e as zonas libertadas estão separadas por um muro de
cerca de 2.000 Km, numa zona fortemente minada, com postos de
observação fortemente militarizados e dotados de sofisticados
sistemas de radar.
Em 1983, a ONU e da Organização de Unidade Africana (OUA)
apelam a negociações directas entre as partes pôr fim ao
conflito. Um ano depois, a RASD é admitida na OUA, o que leva
Marrocos a retirar-se da Organização, como forma de protesto.
Em 1988, cedendo à pressão internacional, Hassan II aceita
dialogar com a Polisário. As negociações arrastam-se até ao
princípio da década de 90, altura em que, em Nova Iorque, ambas
as partes aceitam formalmente um plano de paz concebido pela ONU
em colaboração com a OUA. As partes acordam, designadamente,
usar o censo espanhol de 1974 como base para a elaboração da
lista de votantes no referendo sobre a autodeterminação. O
censo refere-se a 75.000 pessoas. No território instala-se
entretanto uma força de interposição, a Missão das Nações
Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (Minurso),
responsável por garantir o cessar-fogo.
História de uma traição
O referendo no Sahara Ocidental esteve
marcado para 26 de Janeiro de 1992. Quase seis anos depois, o
censo que deveria ter sido completado em 20 semanas continua por
fazer. O impasse, agora desbloqueado por James Baker, é uma
história de traições, denunciada no Congresso dos EUA pelo
ex-embaixador Frank Rudy, em 25 de Janeiro de 1995.
Representante dos EUA na Minurso de Fevereiro de 1993 a Junho de
1994, Frank Rudy, um advogado sem papas na língua, mantém com a
causa saharaui uma relação de solidariedade cimentada na
consciência do inalienável direito do povo à
autodeterminação. Na Conferência Internacional foi demolidor
na denúncia da hipocrisia reinante na ONU, dos jogos de
bastidores, dos compadrios, da corrupção. Não hesitou mesmo em
afirmar que a ONU é «uma desilusão» permanente para quem a
veja como «um cavaleiro andante» na defesa dos povos.
Frank Rudy sabe do que fala. No seu famoso informe ao Congresso
norte-americano - um documento que Butros Ghali o proibiu de
apresentar à Comissão da ONU encarregada dos assuntos de
descolonização -, Rudy acusa as Nações Unidas de pactuar
objectivamente com Marrocos na adulteração dos critérios de
identificação dos votantes, de forma a «saharauizar»
populações marroquinas transferidas para o território, em
violação do plano de paz original, e de assim poder influir
determinantemente no resultado do referendo.
Os números falam por si: após 16 meses de trabalho em
condições de mais do que duvidosa seriedade, a Comissão de
identificação da Minurso apenas tinha conseguido examinar os
processos de 62.000 pessoas num total de 242.000, dos quais
181.000 tinham sido entregues pelas autoridades marroquinas em
nome de supostos saharauis residentes em Marrocos.
Frank Rudy vai ao ponto de afirmar: «O processo de
identificação começou a sério em 28 de Agosto de 1994,
simultaneamente no Sahara Ocidental e no sudoeste da Argélia.
Pode-se dizer com segurança que a partir desta data a Minurso
deixou de ser uma missão das Nações Unidas e se converteu num
instrumento para a dominação por Marrocos do processo de
identificação».
O crime e o erro
Os casos de submissão da Minurso a
Marrocos abundam. Em 27 de Agosto de 1994, as autoridades
marroquinas ordenaram a retirada das bandeiras da ONU no
edifício das Nações Unidas onde deveria realizar-se a
identificação dos votantes. Foram obedecidas.
Durante as sessões, pseudo-jornalistas fotografaram e gravaram
em vídeo todas as pessoas que se apresentaram para
identificação; as imagens nunca apareceram em qualquer meio de
comunicação, mas em contrapartida confirmou-se que os pretensos
jornalistas eram agentes da segurança do Estado marroquino.
No mesmo período, descobriu-se a existência de escutas
telefónicas em todas as linhas locais e internacionais da sede
central da Minurso. Não houve qualquer investigação.
A correspondência chegava regularmente violada; as casas do
pessoal da Minurso estavam sob vigilância...
Nada disto - e o mais que denuncia Rudy - provocou protestos,
investigações, ou chegou sequer ao conhecimento da ONU em Nova
Iorque, aparentemente porque Butros Ghali o impediu. O que não
deixa de ser estranho. Como puderam os EUA e outras forças
envolvidas no processo ignorar o que era do conhecimento de tanta
gente?
O informe que Frank Rudy levou ao Congresso é um libelo de
acusação contra o ex-secretário-geral da ONU, alguns
responsáveis da Minurso e certas autoridades marroquinas. Mas as
suspeitas deixam de fora Rabat e o palácio de Hassan II,
atribuindo a alguns «ladrões» os crimes cometidos em seu nome.
A propósito, Rudy cita Voltaire: «pior do que um crime, é um
erro, e sua Majestade, o Rei Hassan II, não comete erros.»
Ironia, ou uma porta aberta para explicar o volte-face de
Marrocos?
A esperança para a resolução do conflito nunca foi tão
grande. E no entanto... a situação de hoje parece estranhamente
idêntica há de seis anos atrás. O que foi que mudou?
Uma equação com
muitas incógnitas
«... Quais os elementos que influiram para que aparentemente se produza uma espectacular mudança de atitude e se fale de uma possível e próxima data para a realização do referendo? Há realmente vontade de fazer cumprir o Plano de Paz aprovado em 1990 pela ONU ou são outros os factores que levam à mudança da situação?
Lamentavelmente, a experiência ensina-nos que na política internacional o que predomina são os interesses das grandes potências e das empresas multinacionais sobre a justiça ou os legítimos direitos dos povos empobrecidos como é o caso do Povo Saharaui...»
As palavras são de Carmelo Ramirez,
porta-voz da Federação das Instituições Solidárias com o
Povo Saharaui, e um dos principais obreiros da Conferência
Internacional, num recente artigo de opinião em que reflecte na
questão que a todos inquieta. Porquê esta súbita mudança do
Governo de Hassan II?
Ao contrário de outros observadores, Carmelo Ramirez não tem
ilusões quanto ao regime marroquino: «Marrocos está
submetido a uma tirania de cariz medieval, com dois terços da
população na miséria, o apelo integrista reprimido e um
sistema económico-político corrupto que sobrevive graças ao
reconhecimento e apoio da União Europeia, em especial da França
e Espanha». Ramirez não esquece igualmente que Hassan II,
que sempre «jogou a cartada de ser um baluarte do Ocidente no
conflito Este-Oeste», deixou de ter um papel tão relevante com
o fim da guerra fria. Mas bastará isso para justificar a
mudança? É duvidoso.
Mesmo os cada vez mais insistentes rumores sobre a precária
saúde do monarca - cujo processo de sucessão está longe de
estar resolvido - parece fraco motivo para tão espectacular
reviravolta.
Mas há outros elementos a merecer reflexão: o confronto aberto
entre a França (que sempre apoiou a anexação do Sahara por
Marrocos) e os EUA, para o aumento de influência no continente
africano; a crescente aproximação da Argélia (ex-colónia
francesa, apoiante da causa saharaui e nada interessada na
expansão de Marrocos para sul) aos EUA; o crescente interesse
das multinacionais norte-americanas na região, como atestam os
acordos económicos com o governo argelino para a exploração de
produtos estratégicos como o gás natural ou o petróleo; a
violência integrista na Argélia a recomendar a resolução de
outros conflitos, como o do Sahara, que se reaberto poderia
exponenciar a instabilidade em toda a região; as próprias
riquezas do Sahara a suscitar cobiça de negócios prósperos sem
os imponderáveis de um confronto armado.
Neste contexto, a nomeação de James Baker, um político
poderoso e um negociador experiente, como representante de Kofi
Annan, não é certamente uma mera coincidência. Apoiado pelos
EUA, Baker até pode fazer «milagres».
Como interroga Carmelo Ramirez, «não estaremos perante uma
situação em que os grandes interesses multinacionais do
Ocidente aconselhem a celebração do referendo?». A verdade é
que Baker apontou já o ano de 1998 como o ano do referendo. A
bem do povo saharaui, é de esperar que assim seja. Mas um
referendo limpo, honesto, com garantias de que só os saharauis
possam votar e em condições de o fazer em total liberdade.
O futuro, num Sahara livre e democrático, será a incógnita de uma outra equação.
Alerta à comunidade internacional
Os apoiantes da causa Saharaui são
unânimes em considerar que os acordos de Houston representam um
«avanço considerável» no processo de paz, já que permitiram
ultrapassar as diferenças de interpretação em domínios tão
importantes como a identificação dos votantes, o regresso dos
refugiados, o aquartelamento das forças saharauis e marroquinas
e a retirada parcial de Marrocos do Sahara Ocidental, a troca de
prisioneiros de guerra, a libertação de presos políticos, e a
aprovação de um código de conduta durante o período de
transição.
Subsistem, no entanto, algumas lacunas que é necessário ter
presente, designadamente quanto à definição dos limites da
administração de Marrocos; o controlo da força entre o Sahara
Ocidental e Marrocos por parte da ONU; o acesso terrestre,
marítimo e aéreo ao território saharaui; a regulamentação,
por parte das Nações Unidas, do uso dos media por ambas
as partes durante a campanha eleitoral; e a garantia do respeito
pelos resultados do referendo.
Tendo em conta esta realidade, a
Conferência Internacional aprovou uma Declaração Política
em que se alerta para a necessidade de «dotar a administração
da ONU no território, durante a fase de transição e da
campanha do referendo, com as prerrogativas e os meios materiais
e humanos necessários para poder cumprir a sua função com
eficácia, credibilidade e força moral».
O documento apela à comunidade internacional, por outro lado,
para que nesta fase crucial do plano de paz «evite chegar a
acordos com Marrocos que afectem a soberania, o território ou as
riquezas do Sahara Ocidental»; «cesse a venda de armas a
Marrocos até que seja proclamado o resultado do referendo»;
participe na criação de um clima de «segurança e liberdade
para a realização do referendo, através de observadores
acreditados pela MINURSO»; garanta a «participação de
observadores internacionais independentes e da imprensa
internacional»; e dote os saharauis «da assistência
necessária para fazer face aos mais de cinco milhões de
minas espalhadas durante os anos de conflito, o que
dificultará a movimentação durante a campanha referendária e
constitui um grave perigo face ao regresso dos refugiados».
A Declaração Política incliu ainda um apelo especial a Espanha para que aproveite este momento «para levar a cabo uma acção mais dinâmica na garantia de um referendo livre e para aumentar a ajuda à população saharaui». Também as organizações de solidariedade são chamadas a intensificar a sua acção e vigilância de forma a «reforçar os saharauis na defesa dos seus direitos».