A TALHE DE FOICE

Che



Agora que o silêncio voltou, passadas as comemorações e as datas oficiais, o politicamente correcto, agora que tudo regressou ao seu estado (a)normal, é muito menos difícil falar de Che. O que não significa que seja fácil.
Pode parecer um absurdo, mas a verdade é que há temas, assuntos, questões, pessoas?, que nos tocam tão profundamente que sentimos pudor em expor na praça pública os sentimentos que tiveram o condão de despertar em nós. Trata-se de um evidente contra-senso. A postura política, seja ela qual for, só tem sentido quando direccionada para um colectivo. Uma vida dedicada à causa comum, quando assume aspectos de liderança, de exemplo, não pode - não deve - ficar no anonimato, sob pena de perder o seu maior trunfo: o impacto que tem sobre outros, as ondas de choque que provoca. Seria como matar à nascença a semente prenhe de frutos.

E no entanto... como difícil é falar de Che. Como é doloroso ouvir o ruído da pretensa sinfonia de encómios, quais falsos crentes num templo a conspurcar o que deveria ser puro.
Che foi um homem, e como tal falível. Com virtudes e defeitos. Com humores variáveis, com sangue, suor e lágrimas como qualquer um.
Mas Che foi - é? - também um símbolo. Da dedicação, da generosidade, do amor pela humanidade, única força motriz capaz de criar a dinâmica necessária para a criação do homem novo. E por isso tocou - toca? - milhares, milhões - que importa? - de jovens como eu fui, prontos a dar a vida por um sorriso sincero, um abraço do tamanho do mundo. Jovens tão generosos que mesmo vivendo num mundo cão acreditam que a solidariedade é possível, e que haverá um amanhã em que será bom acordar para dizer «bom dia!», ouvir o canto do albatroz, aspirar o perfume de uma amendoeira em flor. Ou outra coisa qualquer que faça sentido na razão de ser de cada um.
Esse foi - é? - o maior dom de Che. O de ser um símbolo da generosidade intrínseca do ser humano. O de despertar em cada um de nós o que de melhor cada um tem para dedicar aos outros.
Haverá quem lhe chame herói romântico, político utópico, anarquista... Que importa, se continua a ser a palavra mágica para dar vida à criança que deixámos de ser? Que importa se é o calor que acende a chama a dar sentido à existência? Que importa se é o sonho que nos comanda a vida?
Como é difícil falar de Che! É como se nos despíssemos na praça pública, como se pusessemos a nu os sentimentos, como se navegássemos sem vela nem navio, como se falássemos de amor a uma plateia de sádicos. E no entanto, que seria de nós sem o Che? Que seria do Che sem nós?
Que há-de ser de nós quando não houver um Che na nossa memória?
Ter a capacidade de cortar amarras sem nunca cortar laços não está ao alcance de qualquer um. Mas Che mostrou que isso é possível.
Ser tão universal que não haja pátria que não nos reivindique é tarefa de gigantes. Mas para Che foi tão natural como respirar.
Partir para a guerra com os olhos na paz é uma frase feita tão completa que já quase ninguém lhe dá crédito. E no entanto, Che moveu montanhas em nome desse lema.
Sobreviver à própria morte, imortalizado num instante como guerrilheiro visionário, parece um absurdo. E no entanto Che vive muito para além da foto que se tornou num ex-libris para sucessivas gerações.
Como é difícil falar de Che.
Como é difícil falar de amor.
Não o podem entender quantos o continuam a assassinar em prosas abjectas. Porque Che está morto, mas a farsa, essa, continua. E é justamente por isso que Che continua vivo no coração do mundo. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1246 - 16.Outubro.1997